Ética e saúde: histórico e desafios atuais

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Dr. Sérgio Sônego Fernandes
Presidente da Comissão de Ética Médica do Hospital Sepaco.

Apesar do conceito de ética ter sofrido inúmeras variações ao longo da história da filosofia, de forma geral podemos caracterizá-la no modo como nós, seres humanos, diferenciamos o certo do errado, o justo do injusto. Se a conduta humana ao longo da nossa existência não fosse permeada pelo mal, a ciência da ética não teria nascido. Inúmeros períodos mais sombrios da história evidenciam a fragilidade dos nossos valores éticos e elevam a importância da sua prática em todas as esferas de interesse da vida humana.

Apenas para uma breve diferenciação ao leitor, o conceito de moral é muito comumente confundido com o de ética, inclusive os dois possuem significados quase sinônimos: ética, do grego ethos, significa costumes; e moral, do latim mores, hábitos. De forma simples, pode-mos dizer que a moral vem de fora do indivíduo e está relacionada a normas e condutas de determinada cultura, local e tempo. A ética é uma reflexão interna, aplicável universal e atemporalmente.

Qual a relação existente entre ética e saúde?
Entremos no conceito de saúde. Enfrentando o semelhante dilema da conceituação de ética, diversas tentativas de definir o tema aconteceram ao longo da história. Uma vez que a compreensão de saúde tem alto grau de subjetividade e determinação histórica, indivíduos e sociedades consideram ter mais ou menos saúde dependendo dos valores do momento e do referencial que tenham (figura 1).

Em 1948, a Organização Mundial da Saúde (OMS) a definiu como o “estado de completo bem-estar físico, mental e social e não apenas a ausência de doença”. Essa atual definição é
questionada por muitos por ser utópica, visando uma perfeição inatingível.

Por mais desafiador que sejam seus conceitos, ética e saúde estão intimamente relacionadas. Da mesma forma que nenhum ser humano é totalmente saudável ou totalmente doente, nenhum é totalmente certo ou errado, justo ou injusto. Nessa perspectiva, em ambas temos a missão da busca permanente tanto individual como coletiva, da vida boa, bela e justa, sendo a ciência do viver (ética) o alicerce para o viver saudável (saúde).

Figura 1: “O conceito de saúde depende do seu referencial histórico.” Estratégia publicitária, usada de 1927 a 1952. Lybrand, Ross Bros and Montgomery.

Ética médica ao longo da história
No século III a.C., Hipócrates, considerado o pai da Medicina, fundamentou a prática médica e marcou a história dando início à era científica, deixando para trás a Medicina de superstição e práticas mágicas. O “Juramento de Hipócrates” é considerado o primeiro código de ética da profissão médica e consolida a relação indissociável entre a profissão e a ética. O dever do médico para com a sociedade é resumido no célebre trecho: “Conservarei puras e santas minha vida e minha arte”.

O regramento ético da Medicina permaneceu por mais de 2 mil anos sob influência do período hipocrático, com a cortesia e a caridade balizando o agir ético-profissional e sob forte influência religiosa. O médico precisava provar acima de tudo ser um bom homem.

Apenas a partir da segunda metade do século XX, a Medicina começou a perder os vínculos com a ética clássica. O paternalismo perde sua força ao ceder espaço para outras profissões da área da saúde e como decorrência do desenvolvimento da cidadania, ao exigir o compartilhamento de decisões com o paciente/família. A perícia e a competência passaram a ser uma exigência para o exercício da profissão. A ciência avançou como nunca antes na história. O bom médico não se limita mais à compaixão, afeto e tolerância, mas precisa estar atualizado com as novas tecnologias e novos conhecimentos científicos. Perde-se o status da sacralidade, em que o ato médico era inquestionável. Juridicamente, o médico é visto como um prestador de serviços de mercado como qualquer outro e, por isso, sujeito a responder pelas falhas que venha a cometer no exercício da profissão, inclusive éticas.

Os valores sociais e culturais em mudança passam a ter forte influência sobre o ato médico, fazendo com que a ética contemporânea precise ir se moldando conforme os anseios da sociedade. Novas questões como aborto, eutanásia, células-tronco e descarte de embriões congelados desafiam os limites éticos. Nesse contexto, a bioética surge influenciando a ética clássica com o desenvolvimento dos princípios de autonomia, beneficência, não maleficência e justiça/equidade.

O ensino e o exercício da ética
O papel do ensino médico atrelado ao ético remete ao juramento de Hipócrates, na função do mestre e seus discípulos. Nos tempos atuais, a formação acadêmica das profissões da saúde peca no ensino da ética. As instituições de ensino na graduação não dedicam o devido tempo de formação ética aos alunos. Isso contribui para que os profissionais desenvolvam uma frágil consciência ética, que passa a ser limitada ao “bom senso” na tomada de decisões técnicas (quanto melhor tecnicamente, mais ético será). Há quem considere indissolúvel o propósito humanitário do profissional de saúde da ética. Em parte há razão nisso, porém voltamos ao dilema da incapacidade humana de fazer sempre o certo. Em vista disso, tanto a formação do profissional de saúde quanto o exercício da sua profissão ao longo da carreira precisam estar balizados pelos preceitos éticos através do exercício da reflexão, como qualquer processo educativo (ensinar e aprender).

Em 1808, o médico e filósofo inglês Thomas Percival organizou o primeiro Código de Ética Médica. Só a partir disso é que a ética médica deixa de ser entendida como um compor-tamento social dos “bons médicos” e passa a ter regras a serem seguidas (aprendidas e desenvolvidas). Esse foi o divisor de águas na história da ética na saúde: o desenvolvimento técnico, ético e humano em equilíbrio de valores e balizado por regras e preceitos (figura 2).

Figura 2: “Médicos divergem e o paciente morre”, l. Cruikshank, 1794.

Em 1847, o “código de Percival” foi adaptado nos Estados Unidos. Vinte anos depois, no Brasil imperial, adotamos o código de ética da Associação Médica Americana.

O Conselho Federal de Medicina (CFM) e as divisões estaduais são responsáveis pela elaboração e pela atualização dos nossos códigos de ética. Desde o nosso primeiro documento, passamos por nove atualizações, sendo a última em 2018. É interessante lembrar que, em sua última versão, houve a participação da sociedade brasileira por meio de consulta pública, com mais de 1.400 contribuições de médicos e não médicos. Todas elas foram analisadas por comissões estaduais e nacional de revisão do código de ética médica, comandadas pelo CFM. Três Conferências Nacionais de Ética Médica debateram e deliberaram as exclusões, alterações e inclusões. Foram incorporados assuntos relacionados às inovações tecnológicas, comunicação/redes sociais e nas relações em sociedade, e mantidos os princípios deontológicos (deveres) da profissão, tais como: autonomia do paciente, absoluto respeito ao ser humano e a atuação em prol da saúde do ser humano e da coletividade, sem discriminações.

O papel das Comissões de Ética Médica nas instituições
Com a evolução da prática médica individual para as organizações de assistência à saúde (hospitais e clínicas), fez-se necessário estender a “gestão da ética” para além dos conselhos. As Comissões de Ética Médica (CEM) nas instituições tornaram-se obrigatórias em 1985 e têm como função a extensão do Conselho Regional de Medicina (CRM) na fiscalização e educação do desempenho ético. São subordinadas ao CRM e possuem autonomia em relação à administração e direção da instituição em que atuam. A importância das comissões é expressamente reconhecida pelo Código de Ética Médica, por dar suporte às ações cotidianas dos profissionais e dirimir os conflitos éticos nos locais de trabalho.

A ação sindicante é a função básica da comissão: acolher denúncias que contenham dúvidas sobre atos médicos que possam caracterizar uma possível infração ao Código de Ética Médica, investigando a situação que gerou a dúvida, ouvindo todos os envolvidos, emitindo um parecer e encaminhando os resultados aos órgãos competentes para as decisões seguintes. A situação de potencial conflito ético (chamada de denúncia) pode chegar por qualquer via à comissão – de uma carta simples escrita de próprio punho à abertura de evento no sistema de notificações da instituição – e por qualquer pessoa, seja um paciente, um familiar, uma equipe multiprofissional ou mesmo solicitada pelo próprio CRM em algumas situações. Mesmo que o denunciante não tenha certeza se de fato é uma infração, é interessante sempre haver a denúncia perante a dúvida.

A comissão, por sua vez, irá apurar detalhadamente os fatos entrevistando envolvidos e registros escritos, sempre à luz do Código de Ética Médica e de forma discreta e sigilosa. Cabe à CEM tão somente identificar indícios de infração ética, pois não é atribuição do órgão emitir juízo de culpa nas análises tampouco determinar apontamentos. O julgamento de culpabilidade e a pena se dão pelo Conselho Regional de Medicina, que dará andamento ao processo investigativo após receber o caso da comissão. Naturalmente, caso não haja nenhum indício de infração ética ou que possa ser resolvido localmente, como em casos de desavenças entre profissionais, o caso é arquivado ou conciliado, respectivamente, sem necessidade de ação do conselho. Na esfera do CRM, as opções de encerramento dos casos ficam entre o arquivamento, advertência, suspensão ou cassação do exercício da profissão.

A relação da comissão e os médicos transcende a somente investigação de queixas. Ela é uma relação cotidiana de melhoria contínua da prática médica ética e da dignidade profissional. Para isso, ações educativas como palestras e workshops práticos com situações reais e hipotéticas para serem debatidas são fundamentais para o exercício construtivo da reflexão e, de fato, desenvolvimento ético.

No Hospital Sepaco, a Comissão de Ética Médica desempenha suas atividades desde 1985. Felizmente, nossa rotina com quase 40 anos de existência tem sido de pouquíssimos casos de real infração ética. A atual formação da Comissão de Ética Médica do Hospital Sepaco é de 11 médicos e está no seu segundo biênio de atuação. Estruturalmente somos divididos em um presidente, um secretário, quatro membros efetivos e cinco membros suplentes. Todas as denúncias são analisadas por um membro da comissão e discutidas em assembleia. A apuração dessas situações envolve reunião com o denunciado (ou por vezes com o denun-ciante ou demais envolvidos) para entendimento das circunstâncias e reflexão conjunta sobre os artigos pertinentes do Código de Ética Médica.

Como papel da CEM nas ações educativas, contamos com palestras de profissionais médicos e advogados especialistas na área, trazendo casos para discussão e reflexão entre os médicos, envolvimento e debate com outras comissões da instituição e a programação de aulas para residentes em formação.

Considerações finais
Somos seres relacionais e, para que vivamos de forma harmoniosa, precisamos estar balizados por normas éticas. O primeiro passo é reconhecer que somos falhos e que apenas o nosso “bom senso” não é suficiente, especialmente em situações mais difíceis emocionalmente, quando nossa capacidade de pensar e agir de forma “boa, bela e justa” está comprometida. Apenas o exercício constante da reflexão individual no que é ou não ético nos desenvolve como melhores pessoas e profissionais. Mais que uma questão de vocação, é o nosso compromisso perante pacientes e familiares, colegas de trabalho e sociedade. Uma boa opção para isso é termos no celular o aplicativo do Código de Ética para leitura periódica ou sempre que necessário, por exemplo.

As instituições, por sua parte, precisam prezar pela saúde ética de seu corpo profissional. Passamos por tempos difíceis na saúde privada (encarecimento da saúde e a necessidade do lucro para sustentabilidade) e na pública (escassez de recursos), tornando mais desafiador o equilíbrio de valores pelos gestores. Comissões de ética plenamente atuantes em vigilância e educação em consonância com a governança clínica da instituição são a base da saúde ética
institucional (figura 3).

Figura 3: Ilustração de Taylor Jones para Hoover Digests, 2004.

Sobre o autor

  • - Presidente da Comissão de Ética Médica do Hospital Sepaco
    - Pós-graduação em Excelência Operacional em Saúde - Lean Six Sigma no Hospital Albert Einstein
    - Residência em Medicina Intensiva pela Universidade Federal de São Paulo
    - Residência em Clínica Médica pela Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo (Hospital Tatuapé)
    - Médico Formado na Universidade Federal do Rio Grande do Sul