Relato de Caso: aspergilose pulmonar associada à COVID-19 em paciente em Unidade de Terapia Intensiva

Tempo de leitura: 15 minutos

Raiza Zucchi Meneghel
Médica Residente em Clínica Médica no Hospital Sepaco

Resumo
Objetivo: Relatar um caso de pneumonia por COVID-19 associada à aspergilose pulmonar em paciente sem comorbidades, internado em Unidade de Terapia Intensiva. Método: Relato de caso baseado em análise do prontuário e revisão da literatura. Considerações finais: A suspeita de APAC deve ser considerada em pacientes que não apresentam melhora clínica a despeito de todas as medidas terapêuticas, principalmente naqueles internados em Unidade de Terapia Intensiva e em uso de ventilação mecânica. O diagnóstico e o tratamento precoce são fundamentais para um desfecho favorável.


Introdução
Diferentes complicações secundárias à infecção pelo SARS-CoV-2 vêm sendo relatadas com acometimento de diversos sistemas. Nos últimos tempos, há uma crescente preocupação em relação às infecções fúngicas associadas à COVID-19, principalmente em pacientes críticos com internações prolongadas. Casos de aspergilose pulmonar associada à COVID-19 (APAC) vêm sendo relatados em diversos centros. Essa afecção contribui com o agravamento da insuficiência respiratória e aumenta a letalidade nesses doentes. O grande desafio é fazer o diagnóstico precoce de APAC, pois a deterioração respiratória muitas vezes é considerada consequência de uma coinfecção bacteriana em vez de fúngica.

Objetivo
Relatar um caso de pneumonia por COVID-19 associada à aspergilose pulmonar em paciente sem comorbidades, internado em Unidade de Terapia Intensiva.

Material e métodos
Relato de caso baseado em análise do prontuário e revisão da literatura.

Resultados
Paciente do sexo masculino, 32 anos, sem comorbidades. Deu entrada no pronto-socorro no dia 10/05 apresentando sintomas gripais já há cinco dias (Data do início dos sintomas: 05/05), porém há dois dias cursando com dispneia em piora progressiva. Apresentou na consulta exame de RT-PCR com detecção de SARS-CoV-2 de outro serviço, junto com laudo de tomografia de tórax com 50% de acometimento do parênquima pulmonar em aspecto de vidro fosco e consolidações. Admitido taquicárdico (FC 120bpm), taquipneico (FR 36irpm) e com hipoxemia (SatO2 84%).

Iniciado oxigênio suplementar em cânula nasal, ceftriaxone e claritromicina, dexametasona 6 mg/dia, enoxaparina profilática, além de outras medidas laboratoriais e terapêuticas. Coletado novo RT-PCR para SARS-CoV-2 no serviço, com detecção do vírus na amostra.

Em 12/05, segundo dia de internação e sétimo dia de sintomas, tendo em vista piora respiratória com hipoxemia importante, foi optado por intubação orotraqueal.

Durante internação, mesmo com todas as medidas de suporte adequadas, tanto para controle respiratório quanto infeccioso, paciente mantinha febre e parâmetros elevados na ventilação mecânica. Sendo assim, no dia 19/05, foi optado por ampliar a cobertura antimicrobiana, dando início a meropenem e vancomicina. No dia 22/05, considerando a persistência de febre, foram colhidas novas culturas e associado polimixina B ao esquema terapêutico atual. Todas as culturas até então eram negativas.

No dia 31/05, com o paciente ainda dependente de ventilação mecânica, foi realizada traqueostomia. Realizada nova tomografia de tórax no dia 03/06, evidenciando opacidades em vidro fosco e focos de consolidação esparsos bilaterais, predominando nas regiões periféricas, conforme imagem a seguir (figura 1):

Figura 1: Tomografia de tórax evidenciando opacidades em vidro fosco e focos de consolidação esparsos bilaterais, predominando nas regiões periféricas

A suspeita de aspergilose pulmonar associada à COVID-19 foi levantada, pois mesmo com todas as medidas de suporte e terapêuticas adequadas, o paciente mantinha quadro de febre refratária e consolidações em tomografia de tórax. Sendo assim, foi optado pela coleta de galactomanana sérica e de aspirado traqueal, dado que o paciente não apresentava condições clínicas para a realização de broncoscopia. O resultado da investigação foi negativo, com galactomanana sérica e de aspirado traqueal de 0,06 e 0,11, respectivamente, ambos abaixo do valor de referência do laboratório.

No dia 08/06, o quadro de febre se mantinha a despeito do uso de antibiótico de amplo espectro e houve piora dos parâmetros ventilatórios, com necessidade de fração inspirada de oxigênio de 100%. Toda a investigação microbiológica realizada durante a internação tinha resultado negativo. Sendo assim, foi optado pelo início empírico de anfotericina B, antifúngico disponível para início imediato na instituição.

Após o início do antifúngico, o paciente apresentou melhora clínica significativa. Foi realizada a broncoscopia no dia 15/06, apresentando secreção mucopurulenta em árvore brônquica, e realizada coleta de lavado broncoalveolar (LBA) para realização de culturas e pesquisa de galactomanana.

No dia 21/06, o resultado da pesquisa de galactomanana no LBA veio positivo (1,69). Associando o quadro clínico, exame de imagem e galactomanana, considerou-se aspergilose pulmonar associada à COVID-19 como diagnóstico provável.

O paciente já vinha em uso de anfotericina B desde o dia 08/06, sendo solicitada a troca da medicação para isavuconazol. Esse é o medicamento de primeira linha no tratamento de aspergilose, sendo orientada a manutenção do esquema terapêutico por 6 a 12 semanas de acordo com a evolução clínica do paciente.

Até o momento deste relato, dia 28/06, o paciente se encontra no vigésimo dia de terapêutica. Apresenta melhora do quadro febril e boa evolução do quadro respiratório, já tendo iniciado nebulização pela traqueostomia por períodos.

Discussão
Diferentes complicações secundárias à infecção pelo SARS-CoV-2 vêm sendo relatadas com acometimento de diversos sistemas. Nos últimos tempos, há uma crescente preocupação em relação às infecções fúngicas associadas à COVID-19, principalmente em pacientes críticos com internações prolongadas.

Casos de aspergilose pulmonar associada à COVID-19 (APAC) vêm sendo relatados com maior frequência e têm sido descritos em diversos centros (1). Essa afecção contribui com o agravamento da insuficiência respiratória e aumenta a letalidade da doença nesses pacientes. Frente a essas situações, o diagnóstico de APAC não é fácil, porque a deterioração respiratória muitas vezes é considerada consequência de coinfecção bacteriana em vez de infecção fúngica (2). É importante ressaltar que a aspergilose pode ter um comportamento invasivo, podendo levar mesmo pacientes imunocompetentes ao óbito (3).

Em uma revisão publicada na Emerging Infectious Diseases, foram levantados casos de APAC de março a agosto de 2020, publicados na FungiScope (plataforma de registro mundial de infecções fúngicas) e na literatura. Em um total de 186 casos de APAC diagnosticados em 17 países, 97,8% estavam internados em UTI e 94,1% estavam em uso de ventilação mecânica. Além disso, os pacientes tiveram uma mediana de oito dias de permanência na UTI até o diagnóstico de APAC (4).

Diante da atual situação da pandemia e dos crescentes casos de infecções fúngicas associadas a COVID-19, consideramos importante a divulgação deste caso. Um paciente jovem, com 32 anos e sem comorbidades, que internou em vigência de insuficiência respiratória hipoxêmica devido a infecção pelo SARS-CoV-2 e que manteve durante toda a internação um quadro de febre refratária. Também merecem destaque a dependência de ventilação mecânica e consolidações em tomografia de tórax apesar de todas as medidas terapêuticas e de suporte terem sido instituídas, inclusive antibioticoterapia de amplo espectro. Foi considerado o diagnóstico de APAC como provável, levando em conta as seguintes evidências: pesquisa de galactomanana positiva no LBA, quadro clínico de febre persistente e piora respiratória a despeito de outras medidas, achados em tomografia de tórax e melhora com terapia antifúngica.

Conforme nota técnica nº 04/2021, divulgada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), a aspergilose pulmonar é uma doença infecciosa causada por fungos do gênero Aspergillus, sendo que a principal forma de transmissão se dá pela via inalatória. Devemos suspeitar de APAC no paciente com SARS-CoV-2 que apresente insuficiência respiratória refratária com lesão pulmonar compatível (cavitação, nódulos, condensações), além de qualquer um dos achados a seguir:

• Febre refratária por mais que três dias;
• Nova febre após um período de defervescência de mais de 48 horas (durante uso de antibiótico adequado, na ausência de qualquer outra etiologia);
• Piora da insuficiência respiratória, apesar de antibioticoterapia e suporte ventilatório adequado, ou dor pleurítica, atrito pleural e/ou hemoptise (5).

Os exames radiológicos podem demonstrar vários achados, sendo que nenhum padrão é específico de APAC. Algumas das alterações encontradas são: múltiplos nódulos, consolidações, cavitações, derrame pleural, opacidade em vidro fosco, opacidade em árvore em brotamento e atelectasias (5).

O diagnóstico de APAC pode ser dividido em três categorias, sendo elas: comprovada, provável e possível. Os critérios diagnósticos levados em conta são o quadro clínico, alterações em exame de imagem e algum método que evidencie a infecção fúngica (6).

Para o diagnóstico ser comprovado, é necessária a demonstração histopatológica de invasão de tecido por hifas, achado que fornece evidência definitiva de aspergilose invasiva. Contudo, é comum o paciente não ter estabilidade clínica que possibilite a realização de biópsia (7).

Para a investigação diagnóstica são necessárias amostras respiratórias. Os principais métodos para a investigação são a cultura e a pesquisa de galactomanana no LBA, cuja coleta deve ser realizada por broncoscopia (5). A detecção de galactomanana pode ser um bom auxílio no diagnóstico (8).

É comum o paciente com COVID-19 não apresentar condições clínicas para a realização de broncoscopia ou o exame ser desaconselhado pela geração de aerossóis, podendo aumentar a chance de transmissão viral. Nesse cenário, diante da impossibilidade de realizar a broncoscopia com coleta de LBA, é coletada galactomanana sérica como alternativa diagnóstica. Valores maiores que 0,5 no soro são sugestivos de APAC no contexto adequado, porém é importante ressaltar que se trata de um exame com baixa sensibilidade e não deve ser utilizado como critério para exclusão do diagnóstico (5).

Outra alternativa seria a coleta de galactomanana no aspirado traqueal, porém resultados positivos podem indicar apenas uma colonização do trato respiratório superior. A indicação de iniciar o tratamento nesses casos deve ser individualizada, levando em consideração as variáveis clínicas e epidemiológicas do paciente. Além disso, o valor de corte para galactomanana é alvo de debate quando colhido deste material (5,9).

A ocorrência de APAC está associada a maior mortalidade, assim como a instituição de tratamento adequado se associa a melhores desfechos (10). O tratamento considerado de primeira linha pode ser feito com voriconazol ou isavuconazol, por um período mínimo de seis semanas, podendo ser estendido até 12 semanas. Uma opção terapêutica alternativa é o uso de anfotericina B, porém acarreta riscos maiores, destacando-se a nefrotoxicidade (5,6).

Considerações finais
A suspeita de APAC deve ser considerada em pacientes que não apresentam melhora clínica a despeito de todas as medidas terapêuticas, principalmente naqueles internados em Unidade de Terapia Intensiva e em uso de ventilação mecânica. O diagnóstico e o tratamento precoce são fundamentais para um desfecho favorável.


Referências bibliográficas

  1. Koehler P, Cornely O, Böttiger B, Dusse F, Eichenauer D, Fuchs F et al. COVID-19 associated pulmonary aspergillosis. Mycoses. 2020; 63(6): 528-534.
  2. van Arkel A, Rijpstra T, Belderbos H, van Wijngaarden P, Verweij P, Bentvelsen R. COVID-19–associated Pulmonary Aspergillosis. American Journal of Respiratory and Critical Care Medicine. 2020; 202(1): 132-135.
  3. Blaize M, Mayaux J, Nabet C, Lampros A, Marcelin A, Thellier M et al. Fatal Invasive Aspergillosis and Coronavirus Disease in an Immunocompetent Patient. Emerging Infectious Diseases. 2020; 26(7): 1636-1637.
  4. Salmanton-García J, Sprute R, Stemler J, Bartoletti M, Dupont D, Valerio M et al. COVID-19–Associated Pulmonary Aspergillosis, March–August 2020. Emerging Infectious Diseases. 2021; 27(4): 1077-1086.
  5. ANVISA. Orientações para vigilância, identificação, prevenção e controle de infecções fúngicas invasivas em serviços de saúde no contexto da pandemia da COVID-19. Brasília; 2021.
  6. Koehler P, Bassetti M, Chakrabarti A, Chen S, Colombo A, Hoenigl M et al. Defining and managing COVID-19-associated pulmonary aspergillosis: the 2020 ECMM/ISHAM consensus criteria for research and clinical guidance. The Lancet Infectious Diseases. 2021; 21(6): e149-e162.
  7. Patterson T, Thompson G, Denning D, Fishman J, Hadley S, Herbrecht R et al. Practice Guidelines for the Diagnosis and Management of Aspergillosis: 2016 Update by the Infectious Diseases Society of America. Clinical Infectious Diseases. 2016; 63(4): e1-e60.
  8. Maertens J, Maertens V, Theunissen K, Meersseman W, Meersseman P, Meers S et al. Bronchoalveolar Lavage Fluid Galactomannan for the Diagnosis of Invasive Pulmonary Aspergillosis in Patients with Hematologic Diseases. Clinical Infectious Diseases. 2009; 49(11): 1688-1693.
  9. de Heer K, Gerritsen M, Visser C, Leeflang M. Galactomannan detection in broncho-alveolar lavage fluid for invasive aspergillosis in immunocompromised patients. Cochrane Database of Systematic Reviews. 2019.
  10. Bartoletti M, Pascale R, Cricca M, Rinaldi M, Maccaro A, Bussini L et al. Epidemiology of Invasive Pulmonary Aspergillosis Among Intubated Patients With COVID-19: A Prospective Study. Clinical Infectious Diseases. 2020.

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