O impacto das malformações congênitas na família e na equipe multidisciplinar
Dra. Renata Castro
Coordenadora assistencial da UTI Neonatal do Hospital Sepaco
As malformações congênitas são alterações estruturais ou funcionais, de um ou mais órgãos, que surgem durante o desenvolvimento do feto na gestação, com significativa relevância na morbidade e mortalidade infantil, correspondendo a segunda principal causa de morte em recém-nascidos e crianças menores de 5 anos no continente americano.
Com o avanço tecnológico, o diagnóstico pré-natal tornou-se mais preciso, permitindo informações detalhadas sobre o feto, diagnósticos cada vez mais precoces e possibilidade de intervenções terapêuticas intra-útero. As causas são diversas, abrangendo fatores genéticos e cromossômicos, complicações gestacionais, fatores ambientais e uso de medicamentos ou substâncias, porém um grande grupo de malformações tem etiologia desconhecida.
Programas de vigilância de malformações na população mostram que cerca de 2 a 3% dos recém-nascidos apresentam anormalidades em algum órgão ou sistema, e, em 19% dos abortos espontâneos, o feto apresentava um defeito localizado ou síndrome. O impacto na gestão de saúde também é alto, com custos elevados de exames e procedimentos, aumento do número de internações hospitalares, internações prolongadas e necessidade de home-care.
Diante desse cenário, eu questiono:
E para além do diagnóstico e opções terapêuticas, como a malformação fetal se apresenta no contexto familiar? Como a equipe multidisciplinar de saúde se prepara para receber um bebê com anomalias físicas graves na unidade de terapia intensiva neonatal?
A gestação é um fenômeno complexo. O desejo de ter um filho algumas vezes ocorre antes da concepção, com planejamento e sonhos, outras vezes, em uma gravidez inesperada e não desejada, esse bebê vai sendo acolhido aos poucos. Além do desenvolvimento orgânico intra-útero do bebê, existe a formação no psiquismo dos pais de uma imagem mental do bebê, com expectativas e desejos, o que chamamos de “bebê imaginário”. O vínculo materno e paterno vai sendo construído ao decorrer da gestação, com o crescimento da barriga, os chutes, conversas, contando com ajuda também da visualização do bebê através do ultrassom, influenciando no apego ao identificar expressões faciais do feto, sua movimentação e batimentos cardíacos, funcionando como uma antecipação do encontro mãe/pai e filho.

Nesse contexto de acompanhamento de uma gestação, como é, para o médico e para a família o momento em que se descobre uma malformação no feto? Após a detecção de uma anormalidade, como ocorre a notícia, a informação aos pais de que seu bebê apresenta alguma alteração que pode ser incapacitante ou até mesmo limitante para a vida?
O diagnóstico de uma malformação fetal traz grandes implicações para a gestante e seus familiares. A perda do bebê idealizado, imaginário, caracterizando uma “morte” seguida pelo nascimento do bebê real, com doenças físicas e necessidades peculiares não antes imaginadas, em paralelo a um turbilhão de sentimentos como culpa, tristeza, negação, dor, raiva, desespero, dúvidas e fracasso. Nesse momento é fundamental o acompanhamento intensivo e multidisciplinar da família, acolhendo o impacto inicial e elaborando os sentimentos resultantes do diagnóstico e suas consequências.
A gravidez, por si só, gera perspectivas de grandes mudanças, com sentimentos ambivalentes durante a gestação, com transformações corporais e experimentação de profundas emoções. Perde-se a vida anterior, com liberdade e preocupações apenas com si mesmo, para uma realidade onde se deve lidar com um ser humano totalmente dependente de cuidados. Essa difícil transição, acompanhada por complicações gestacionais e mudanças inesperadas de expectativas, pode se tornar patológica.
Pesquisas com entrevistas de pais de bebês com malformações congênitas revelam, num período inicial, sentimentos como choque, tristeza, preocupação, raiva, falta de esperança, incapacidade, culpa, necessidade de confirmação diagnóstica e opinião de outros profissionais na expectativa de um diagnóstico diferente, vergonha, medo do preconceito, impactos negativos na autoestima, com sentimento de inferioridade em relação a outras gestantes e muita solidão. O vínculo com o bebê pode ser prejudicado pelo medo e possibilidade de óbito fetal ou neonatal. Aqueles pais tristes, assustados e angustiados, na maioria das vezes, estão sozinhos. Muitos relatos escancaram o sentimento de solidão dos pais, sujeitos a julgamentos e questionamentos, submetidos a cobranças de aceitação imediata e amor incondicional desse filho que não era o esperado e o idealizado. Além disso, o sentimento de responsabilização pela malformação é bastante comum. Muitas mulheres se perguntam o que fizeram de errado, tentando identificar possíveis falhas ou omissões. Quando a gestação não é desejada ou houve tentativa de aborto, o sentimento de culpa pode ser ainda mais acentuado. Em casos de malformações incompatíveis com a vida, não só o luto pelo “bebê imaginário” precisa ser elaborado, mas também o luto pelo bebê real, que não irá sobreviver, potencializando sentimentos de tristeza, frustração, ansiedade e depressão.
Contudo, com o passar do tempo, na maioria dos casos, esses sentimentos são substituídos pela fé, esperança, amor, força e sentimento de capacidade de enfrentar a situação, com equilíbrio e reorganização.
É imprescindível que haja cautela e sensibilidade na comunicação de suspeita ou confirmação de malformação fetal, na tentativa de minimizar as repercussões negativas da notícia, oferecendo acolhimento e disponibilizando acompanhamento psicológico aos pais. A busca por informações sobre a doença certamente irá ultrapassar os limites do consultório e hospital, avançando pela internet. Sabemos que os sites de busca podem ser excelentes aliados, mas também vilões, por conterem todo tipo de informações, às vezes fantasiosas. Cabe aos profissionais de saúde a missão de filtrar o essencial, explicar, da melhor forma possível, a gravidade da malformação, as opções terapêuticas, paliativas ou curativas, e prognóstico de cada quadro clínico, informando de forma neutra, sem influenciar nas decisões dos pais, respeitando suas reações sem julgar. A equipe multidisciplinar deve se certificar que as informações estão sendo compreendidas e elaboradas, trabalhando em cima dos dados clínicos reais, mas considerando o tempo necessário de cada indivíduo para essa compreensão. Jamais deve-se destituir os pais de suas esperanças, são recursos de enfrentamento legítimos, lembrando que a medicina não é uma ciência exata, e a vida muitas vezes nos surpreende.
Com relação aos profissionais de saúde, é importante refletir sobre o impacto emocional no atendimento a essas famílias e ao bebê malformado, sendo frequente a angústia e ansiedade proporcional à gravidade do quadro, principalmente em casos incompatíveis com a vida, mas que sobrevivem por alguns dias na unidade de terapia intensiva neonatal. É comum o sentimento de impotência frente ao quadro, com sofrimento pela impossibilidade de cura e a dificuldade de lidar com dores intensas dos pais, que mobilizam significativamente a equipe. Lidar com tal sofrimento é uma tarefa dura e desgastante, e é preciso voltar o olhar para quem acompanha esse paciente e seus familiares.
Em síntese, a aceitação do diagnóstico de uma anormalidade fetal é muito difícil para as famílias, com intenso sofrimento psíquico e possíveis complicações como depressão e ansiedade, além de riscos de prejuízo no apego e vínculo com o feto. A admissão e cuidado do bebê malformado é um desafio para a equipe multiprofissional. Estratégias e planejamento terapêutico individual são necessários para que seja oferecido o melhor atendimento para essas famílias, acolhendo e minimizando o sofrimento já intenso, com seguimento em conjunto com a equipe de cuidados paliativos e psicologia, desde o pré-natal.
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