Humanização e Cuidados Paliativos
Carolina Menezes Marson
Psicóloga nas Equipes de Cuidado Paliativo Adulto e Pediátrico do Hospital Sepaco
Em tempos de pandemia, as questões sobre humanização em saúde parecem ter ganhado ainda mais espaço. Quando pensamos no ano de 2020, nos deparamos conosco, profissionais que cuidam do humano, precisando se reinventar para levar sentido e cuidado em meio ao caos que passamos a presenciar todos os dias.
Humanização é um substantivo que significa ato ou efeito de humanizar, de tornar mais sociável; assim, ser humano, no cuidado ao humano, inicia-se no respeito ao bater na porta do quarto do leito do paciente para pedir licença, é perguntar pela cortina da UTI, se é permitido adentrar aquele pequeno espaço de privacidade invadido o tempo todo por aparelhos, procedimentos e pessoas desconhecidas, ou seja, isso é ação humana. Humanizar é também favorecer que esse espaço hostil, na maior parte das vezes insalubre, possa ser lembrado pelo toque de afeto e carinho direcionado para aquele que vivencia a dor do adoecimento. Humanizar é também se reinventar diariamente em suas ações que podem ser de cuidado ou de troca, por isso também é direcionado ao paciente, à família, mas humanizar é ato com a equipe.
Diante da importância que essas ações humanas possibilitam em relação ao tratamento, ao adoecimento, às questões relacionadas à morte, ao morrer, ao sofrimento e às dores que permeiam as famílias, os pacientes e as equipes devido a tantas perdas que a doença coloca, é que nossa trajetória no Hospital Sepaco se inicia, mais especificamente em 2017, com a ideia de ações paliativas, no sentido de nortear as conversas, de possibilitar uma sensibilização das equipes e da instituição, para que os princípios desse cuidado pudessem acontecer nesse ambiente. Alguns conceitos eram discutidos em Visitas Multiprofissionais da Unidade de Internação Adulto diante de casos complexos, que demandavam um olhar integral. Temas começaram a ser discutidos em Simpósios, Reuniões Científicas e algumas ações práticas puderam ser realizadas com pacientes internados.
Vendo a necessidade de uma ampliação desse olhar, das discussões, de aproximar as famílias e os pacientes nas tomadas de decisões e sentindo o desejo desse cuidado em grande parte das equipes da instituição, em 2018 criamos a Comissão de Cuidados Paliativos, incluindo uma grande parte dos profissionais da Unidade de Internação Adulto, com o objetivo de garantir um dia, horário e espaço fixo para discussão de conceitos e ações dentro da instituição para que uma equipe pudesse ser construída. Passamos a envolver outros profissionais, outras unidades.
A ideia das Conferências e Reuniões Familiares ganhou corpo nesse momento, e o foco do cuidado após a morte foi um diferencial na Instituição, favorecendo o retorno das famílias, a possibilidade de intervenção diante de lutos complicados e a observação do que era importante melhorar em nossa assistência.
Em 2019 sentimos a necessidade de reformulação do protocolo inicial, para que este garantisse um fluxo de chamado pela equipe e trouxesse norteadores para aqueles que ainda não tivessem claros os conceitos. Ainda sentíamos a dificuldade de assumir ou participar de casos complexos diante de uma equipe não formalizada e de preconceitos de diversos profissionais, mas seguimos firmes e insistentes na proposta de um cuidado integral.
Aumentamos o número de reuniões científicas para discussões sobre o tema, apresentamos alguns indicadores de qualidade sobre dados já colhidos sobre esse cuidado, e naquele momento tivemos o retorno da instituição que este projeto seria oficializado.
Em 2020, em meio à pandemia e à percepção sobre a influência positiva que nosso trabalho teve em relação aos pacientes com COVID-19, bem como àqueles que continuavam chegando independente da pandemia, viu-se que os conceitos, bastante discutidos em cuidado paliativo, de Comunicação, Deliberação, Controle de Sintomas, garantiam construção de vínculo e acolhimento dos sofrimentos. Foi nesse cenário de pandemia que a equipe foi oficializada, com experiências marcantes, histórias complexas e mortes dignas.
O ano de 2020 foi de construção dessa equipe, garantindo que as reuniões científicas se mantivessem todo mês, com temas amplos sobre cuidados paliativos, de forma online, além de participação nas visitas multidisciplinares e treinamento das equipes assistenciais. Percebemos a importância das reuniões familiares e seguimos construindo indicadores de qualidade a fim de mostrar o que temos colhido, pois apesar de existirem ações há alguns anos, isso tem sido vivenciado de forma integral há poucos meses.
Hoje, a instituição conta com duas equipes de Cuidado Paliativo: Pediátrica e Adulto. Em ambas, ações têm sido possíveis e gostaríamos muito de poder escrever mais detidamente sobre elas (peçam para lê-las nas próximas edições, temos muito para contar!!), porém, de forma resumida, pode-se dizer que mesmo diante da pandemia, descobrimos muitos recursos possíveis e meios para aproximar as famílias e seguir de forma ainda mais intensa com o acolhimento e cuidado após a morte dos pacientes por videochamadas, quando a presença física não era possível. Favorecemos batismos, comemorações de aniversário, visitas religiosas, visitas de animais de estimação, entendendo que tais ações levavam sentido ao cuidado e diminuíam o peso da internação e da impossibilidade de muitos não receberem isso diante da morte que se mostrava iminente. Favorecemos a culinária, sabendo da importância do alimento em nossos afetos, em nossa recuperação, lembrando que isso é controle de sintomas e, alinhado ao desejo do paciente, às discussões com a equipe, é humanização e cuidado paliativo. Nos descobrimos nas visitas domiciliares a pacientes queridos e que precisavam desse cuidado. Mesmo que já não estivessem mais na instituição, seguimos firme nessa nova modalidade de intervenção e cuidado.
As despedidas presenciais e por videochamadas foram possíveis e levamos a sério todos os áudios recebidos das famílias, possibilitando que, mesmo a distância, todos estes pudessem ser ouvidos a quem se dirigia. Em meio a isso, vimos que muitas dúvidas se mantinham, que nosso cuidado precisava ser além da internação e passamos a ter um celular corporativo, para que as famílias tivessem referência de cuidado diante de muitas dúvidas que surgem em casa.
Acolhemos a equipe por meio de rodas de conversas, nas reuniões de equipe e na visita multidisciplinar, lembrando que todos sofrem e que todos necessitam de cuidado, pois ações verdadeiramente humanas não focam apenas um grupo de pessoas, precisam ser distribuídas a quem delas necessita. Cuidar do outro, outro semelhante, gera angústia e impotência, portanto saber que há recursos na escuta do outro que divide esse espaço favorece a simbolização pela troca de experiência.
Passeios na área externa, para que aqueles dias dentro de quatro paredes pudessem ganhar um pouco de luz através do sol, som através do vento, dos carros, e que a vida cotidiana pudesse ser vivida, mesmo que por 5 minutos, por muitos que jamais sairão para ela novamente, são sinais de que a esperança precisa caminhar junto nesse processo, que a fé é recurso que fortalece e que muitas vezes, sem ela, não é possível seguir este caminho que, em alguns casos, se encerrará dentro deste ambiente, ao som de aparelhos, de macas sendo conduzidas pelo corredor. Aqui, nesta instituição, o som dos carros e a luz do sol podem ser sentidos e vividos por aqueles que desejam.
As fotos que seguem ilustram algumas vivências destas contadas acima, dentre milhares de histórias reais, sofridas e, especialmente, vividas no corpo adoecido, de cada paciente e na alma de cada familiar, mas com certeza no trabalho da equipe.
- Sr. Ademir com a esposa Sra. Sônia e a equipe da fisioterapia.
Foto: Arquivo Pessoal* - Talita e Bradock, seu filho canino. Foto: Arquivo Pessoal*
- Maria Helena com os filhos pets. Foto: Arquivo Pessoal*
Finalizando, não se pode concluir sem garantir que fique claro que essas ações são construídas pelos valores e desejos das famílias e pacientes, especialmente pela equipe que está por trás disso. Não é um humano que as realiza, mas uma infinidade de pessoas (humanas) interessadas e comprometidas com o que fazem, especialmente comprometidas em entender que humanização é dar conta do insuportável da dor da perda, da tristeza e muitas vezes da morte, que não é nada bela. Abaixo um agradecimento em forma de texto para estas famílias, pacientes e especialmente para os enfermeiros, técnicos e auxiliares de enfermagem, fisioterapeutas, médicos, fonoaudiólogos, nutricionistas, farmacêuticos, assistentes sociais, equipe da comunicação, controladoria de acesso, higiene, marketing, ou seja, para todos, porque sem cada um deles nenhuma ação é possível.
“Que ambivalência é o hospital! Turbulência e calmaria caminham juntas, amor e raiva sempre de mãos dadas.
De um lado, uma jovem de 38 anos, com um câncer de colo de útero metastático, que me olha e diz: “Não quero mais rádio e químio…”. Na reunião combinada para escutar sua decisão, ela solta: “Quero 5 minutos de vida e não uma vida onde o tratamento é um fardo, onde fico longe dos meus… não achem que eu desisti… hoje eu me sinto curada…”
Do outro, um jovem de 36 anos, com um câncer de rim metastático, com uma magreza que eu nem sabia possível, lutando por mais 5 minutos de vida. Já não dá nem para falar. A esposa então fala: “Elas tentam dar uns chacoalhões (a família de forma verbal) em mim para ver se eu acordo, mas Dra, eu não estou dormindo, eu tô vendo ele morrer, mas eu quero continuar tendo fé…”
Participar destas cenas sempre me faz pensar que, nestes casos, apesar de a juventude e o câncer serem os únicos pontos comuns, em ambos também há tanto sofrimento que justamente este lugar de dor é que tem possibilitado escolher; é no sentido construído na doença de cada um que só escuto eles escolherem falar de vida, aproveitando para que a chegada da morte, do momento final, esteja alinhada com o sentido da vida de cada um até este momento.
Neste lugar, chamado de hospital, permeado por saberes diversos, por toda a ambivalência, por uma série de comunicações, a voz que ressoa poderosa é essa de quem vive literalmente no corpo; essa é a voz que ouço, não há maior saber, do que saber de si num corpo doente, quando aquele que a vive decide falar desse lugar: pela fala, pela dor, pela magreza excessiva, lágrimas, pela extensão de si na família que está ao lado.
Fica quase impossível não ser tomado por esse sofrimento que quase nos rasga e fere a alma; também é quase impossível se proteger e não ser afetado, pois ser afetado é se possibilitar sentir afeto, não?!
Tenho considerado que cuidar só é possível se também construímos sentido e o vemos nesse cuidado oferecido.
Então, hoje, este texto vai para estes dois que cito, mas muito especialmente para a equipe que segue com eles e comigo. Só tem sido possível escutar tanta dor porque tenho um ninho de abraços e trocas que direcionam o insuportável da perda e do sofrimento que também sentimos para ações verdadeiramente humanas, sem borboletas e laços, mas ações de cuidado da alma, através do que cada saber pode oferecer e suportar.
Obrigada pelo que vocês tornam possível construir desde que iniciamos essa ideia, que hoje é ação!”
*Imagens cedidas e autorizadas pelos familiares dos pacientes