Impactos psicossomáticos do novo coronavírus em profissionais de saúde: uma grave realidade institucional
Dr. Luis Felipe de Oliveira Costa
Psiquiatra Coordenador da Equipe de Retaguarda e Ambulatório Hospital Sepaco
Introdução
Em novembro de 2019, uma nova doença causada por coronavírus (COVID-19) foi primariamente descrita na cidade de Wuhan (China) e espalhou-se rapidamente. Disseminou-se com extrema velocidade no país e também em todo o mundo, tornando-se uma emergência de saúde global. A saúde mental dos profissionais médicos, enfermeiros e equipe multiprofissional foi largamente desafiada durante o surgimento imediato de uma epidemia viral (1). O impacto desta doença só possui paralelo com guerras (1,2,3).
Pesquisas sobre os efeitos psicossomáticos em surtos de doenças infecciosas como a síndrome respiratória aguda grave (SARS) e gripe pandêmica (H1N1) demonstram padrões consistentes de reações e englobam as experiências da equipe em trabalho, dos indivíduos em quarentena e daqueles que retornam ao turno após a doença (2).
Durante o árduo trabalho, o estresse emocional aos poucos se fez presente na equipe médica: medo e ansiedade surgiram inicialmente com gradativa redução ao longo da epidemia, enquanto a depressão, sintomas psicossomáticos e de estresse pós-traumático apresentaram-se, num segundo momento, com extensa duração, o que gerou impactos gravíssimos. Permanecer isolado, ter contato com pacientes infectados e trabalhar em posições de alto risco são aspectos intimamente ligados aos traumas psíquicos (1,3).
Entre os maiores desafios propostos à equipe, temos: aumento expressivo da carga de trabalho, normalmente observada em situações como esta, medo de se contaminar ou às próprias famílias, familiarizar-se com novos protocolos e constantes modificações, trabalhar continuamente com equipamentos de proteção individual (EPI), realizar a assistência de pacientes criticamente doentes ou ainda cuidar de colegas próximos que eventualmente se infectaram. Em muitos casos, os recursos tenderam a ser levados ao limite, especialmente em situações onde muitas vezes os médicos eram obrigados a decidir quem seria ou não direcionado para um respirador, por exemplo. A complexidade destes aspectos pode ser muito bem compreendida pela equipe, entretanto não ser bem vista pelo público, o que aumenta o fardo dos profissionais (1,2).
A literatura cita que os efeitos sobre a saúde mental dos membros de uma equipe médica de atenção à SARS não são apenas de curto prazo e que a importância de um suporte emocional eficaz e treinamento é significativa. Ações que sejam eficientes e abrangentes devem ser tomadas a fim de garantir o bem estar destes indivíduos (1,2).
Reações de estresse agudo
As reações de estresse agudo podem ser significativas em sua apresentação, embora geralmente remitam dentro de poucas semanas (2,3). Elas incluem reações emocionais, cognitivas, físicas e sociais e geralmente apresentam-se combinadas. É importante que a equipe esteja ciente dessas reações e que é normal experimentá-las, uma vez que a angústia surge do sentimento de culpa ou constrangimento pelo fato de senti-las (figura 1).

Figura 1: Diferentes tipos de reações ao estresse agudo (3)
Injúria moral
A injúria moral está presente quando há um desvio do que seria considerado correto, seja por si próprio ou por alguém com legítima autoridade em uma situação de risco (2,3). Mesmo sabendo que a pandemia é uma espécie de desastre natural, as reações de eventuais lideranças serão tomadas por muitos como “desvios de boas normas ou do que seria moralmente adequado”. Obviamente, mesmo no mais perfeito dos cenários, esta pandemia teria sobrecarregado os recursos existentes visto o número de pacientes que requerem ventilação mecânica e cuidados intensivos. Entendimento compartilhado pelas equipes, mas nem sempre pelo público. Muito possivelmente em um nível individual e de equipe isso acarrete culpa antecipatória: é fundamental que coordenadores e líderes de equipe estejam sempre atentos para eventuais mudanças de humor em seus colaboradores, enfatizem que estas decisões são tomadas através de fluxos institucionais e que ninguém está só neste tipo de resolução (2,3).
Transtorno de estresse pós-traumático (TEPT)
O preparo das instituições e hospitais para a pandemia de COVID-19 incluiu um cenário catastrófico, em que, muito possivelmente, haveria uma magnitude de perdas sem paralelo (1,2,3). Ao levar-se em conta que de fato o coronavírus apresenta-se nos hospitais como uma situação de risco grave e de aumento de mortalidade, isso acarreta nos profissionais que lidam no dia-a-dia um medo e receio constantes que seus próprios familiares eventualmente adoeçam, motivo pelo qual a chance de TEPT também aumenta. Há pesquisas que apontam uma prevalência padronizada de TEPT em intensivistas da ordem de 9.6%. Após o COVID-19, acredita-se que essa prevalência tenha ultrapassado os 10% (3).
O que as organizações podem fazer pelas equipes?
As instituições devem ser extremamente perspicazes no sentido de manter o bem estar físico e mental de seus colaboradores durante a pandemia; tradicionalmente grande parte da estrutura e recursos têm sido postos a favor das equipes no sentido de tratar condições que se desenvolvem ao longo do tempo, como comorbidades psiquiátricas e emocionais. Nestes casos específicos, deve haver uma substituição do foco principal que antes tinha como alvo o aspecto curativo e passa a ter o preventivo (2,3).
De uma forma geral, deve ser dada atenção especial a todos os aspectos presentes no ponto de tempo basal ou inicial: momento em que as equipes passaram a experimentar mudanças de turno, plantões noturnos, pressão de trabalho, turnos estendidos, além da “medicina de corredor” . Todos estes são fatores que influenciam na perda do bem estar. O reconhecimento destes aspectos e consequente entendimento de como a pandemia também os afeta é fundamental. Ela igualmente afetará outros aspectos relacionados ao bem estar, como a estrutura das organizações, regras de equipe, autonomia e disponibilidade das lideranças (1,3).
Oferecimento de auxílio psíquico e suporte emocional
Está comprovado historicamente (em situações de pandemia inclusive) que este tipo de suporte oferecido através de acolhimento psiquiátrico e psicológico oferece vantagens às equipes, desde que trazido com um desenho não impositivo (muitas vezes a imposição destes serviços causa mais danos que benefícios) 3. A disponibilidade médica especializada e psicológica tende a ser muitas vezes escassa em alguns serviços. Importante e fundamental que esta tarefa seja realizada em um ambiente favorável (por exemplo, com local confortável, música ou algo que ofereça um aspecto mais relaxante). Evidentemente que o apoio entre pares pode ser útil, mas muitas vezes o aspecto de neutralidade no atendimento pode ser mais importante, pois propicia um ambiente em que o indivíduo pode ser ele mesmo, espontâneo (a), sem críticas ou julgamentos da equipe (2,3).
Suporte para as equipes que estão em quarentena ou isolamento
Diversas questões são levantadas devido ao isolamento, como medo de autocontaminação ou então de contaminar pessoas próximas e queridas. A possibilidade de oferecimento de acomodações adequadas aos colaboradores eventualmente expostos ao COVID-19 auxilia na mitigação da angústia da possibilidade de contaminação de família ou terceiros.
Ainda não há dados sobre qual o tipo de equipe no hospital seria mais ou menos exposta à angústia e estresse da quarentena, portanto o cuidado psicossocial deve ser oferecido a qualquer colaborador (figura 2).

Figura 2: Medidas de suporte para equipes em quarentena (3)
O cuidado no retorno ao trabalho presencial também é particularmente importante, visto que muitos indivíduos apresentam-se receosos com a volta ou com o medo de se contaminarem. Comportamentos do tipo evitativo são comuns, por exemplo, deixar de examinar um paciente crítico devido a possibilidade de se infectar.
O que as lideranças podem fazer pelos colaboradores?
Embora pareça óbvio, a melhor coisa que um líder pode fazer pela sua equipe diante de uma crise é vestir a camisa e ser “o líder”. Certamente é algo muito mais difícil na prática do que escrever algumas palavras a respeito no papel. A liderança durante uma crise é, de fato, desafiadora (1,3).
Isto se torna particularmente mais difícil durante um evento de pandemia, onde os próprios líderes encontram-se expostos aos mesmos estressores que seus colaboradores. Por outro lado, é num momento de crise que lideranças se renovam, crescem e aparecem.
O impacto desta pandemia e a forma como os líderes irão ou não responder afetará possivelmente as organizações, relações interpessoais e respectiva cultura nos anos seguintes. Iremos destacar três pontos-chave a seguir (figura 3).

Figura 3: Pontos-chave no cuidado das equipes de saúde durante a pandemia (3)
1) Comunicação: é praticamente impossível um líder comunicar de forma contínua e em excesso; um desafio nesta pandemia é o que comunicar. Ser transparente e honesto é fundamental e principalmente se basear em fatos. Importante manter atitude positiva e estimular os colaboradores a enxergarem que “melhores dias virão”.
2) Empoderamento: não há momento mais importante que este para que líderes estimulem cada indivíduo a liderarem a si próprios. O absenteísmo, a ausência de pessoas em turnos, entre outros, muito provavelmente torna a chama da liderança neste momento algo que pode ser passado adiante, como numa maratona.
3) Humanização e humildade: a chave para o suporte de uma equipe neste momento é a compreensão da humanização da situação. Líderes devem saber identificar prós e contras deles próprios e de suas equipes.
Risco de adoecimento do humor, depressão e suicídio
Esse se torna um capítulo à parte nesta pandemia: é fundamental conhecermos e criarmos uma referência de comportamento dos nossos colaboradores para que possamos identificar o momento em que algo não vai bem. Tristeza em si pode representar somente um dia ruim ou estar chateado com algo e isso é normal.
As prevalências de depressão, ansiedade e estresse de fato estão mais altas nesse momento histórico da pandemia e, desta forma, é imprescindível que aprendamos a reconhecer o que é normal e o que pode ser doença.
Os sinais de alerta surgem quando a tristeza passa a ser recorrente (dura pelo menos duas semanas), ocorrendo na maior parte dos dias; o indivíduo encontra-se diferente do seu normal, para baixo, perde o prazer em coisas simples, com diminuição do apetite ou peso, apresenta insônia, culpabilidade excessiva ou faz ruminações sobre o passado com frequência: isso de fato é a depressão já infelizmente instalada. (figura 4)

Figura 4: Sinais e sintomas da depressão (3)
Porém, nem toda pessoa que adoece pela depressão, necessariamente, o faz de uma forma grave. Casos leves e moderados representam a maior parte dos indivíduos acometidos. Entretanto, uma pequena parcela deles eventualmente evolui para formas mais severas e que necessitam de atenção. Frases do tipo “eu não presto para nada”, “sou um peso pra todos”, “tenho vontade de dormir e não acordar mais” devem ser observadas e ouvidas com muita cautela, pois podem representar um pensamento de suicídio. Essa é a parte árida do tema! Apesar disso, existe um aspecto muito positivo em relação ao suicídio: normalmente ele possui uma perspectiva processual, ou seja, o indivíduo exibe uma série de sinais e indícios de que algo não vai bem durante um bom período, portanto, há tempo para agir. E ao abordarmos essa pessoa de forma acolhedora e compreensiva, salvamos uma vida!
Por esta razão, a respectiva identificação e triagem de colaboradores por lideranças é primordial neste momento da pandemia, a fim de realizar rápido e adequado encaminhamento especializado.
Referências bibliográficas
- Kang, Lijun; Ma, Simeng; Chen, Min; Yang, Jun; Wang, Ying; Li, Ruiting; Yao, Lihua; Bai, Hanping; Cai, Zhongxiang; Xiang Yang, Bing; Hu, Shaohua; Zhang, Kerang; Wang, Gaohua; Ma, Ci; Liu, Zhongchun. Impact on mental health and perceptions of psychological care among medical and nursing staff in Wuhan during the 2019 novel coronavirus disease outbreak: A cross-sectional study. Brain, Behavior, and Immunity, ISSN: 0889-1591, Vol: 87, Page: 11-17. 2020.
- Lai J, Ma S, Wang Y, et al. Factors Associated With Mental Health Outcomes Among Health Care Workers Exposed to Coronavirus Disease 2019. JAMA Netw Open. 2020;3(3):e203976. doi:10.1001/jamanetworkopen.2020.3976
- Walton M, Murray E, Christian MD. Mental health care for medical staff and affiliated healthcare workers during the COVID-19 pandemic. European Heart Journal: Acute Cardiovascular Care. 2020;9(3):241-247. doi:10.1177/2048872620922795