Avaliação perioperatória – uma abordagem prática
Ingrid Sampaio Froehner
Residente de Clínica Médica do Hospital Sepaco.
Graduação em Medicina pela Universidade Federal do Paraná – UFPR
Resumo
A estruturação da cirurgia vai muito além do ato cirúrgico, englobando avaliações para estratificação de risco, otimização de condições médica e manejo de complicações.
Este artigo faz uma abordagem sobre risco pré-operatório e solicitação de exames adicionais, sobretudo cardiovascular e pulmonar, otimização da terapia medicamentosa nesses pacientes e manejo clínico das principais comorbidades, como diabetes e doença renal crônica. Por fim, é feita uma abordagem prática nos cuidados com as complicações mais comuns no pós-operatório.
Palavra-chave: Risco Cirúrgico, Cirurgia, Pré-Operatório, Complicações, Manejo Clínico.
Objetivo
Internistas (médicos especializados em clínica médica) são frequentemente solicitados para avaliação de pacientes no pré e no pós-operatório. O objetivo dessas avaliações vai desde estratificações de risco, otimização de condições médicas até manejo de complicações.
Porém, o momento perioperatório envolve diversas especialidades e profissionais. Foi pensando nisso e na complexidade do assunto que escrevi este artigo, cujo objetivo não é contemplar todo o conteúdo, mas apresentar uma abordagem prática e ampliar a discussão sobre o tema.
- Risco pré-operatório e solicitação de exames adicionais
1.1 Cardiovascular
A avaliação pré-operatória consiste em avaliação de risco associada ao paciente, risco associado à cirurgia e à urgência da cirurgia (emergência, urgência e urgência relativa). A abordagem proposta pelo American College of Cardiology – ACC (1) e pela American Heart Association – AHA (1) para avaliação de pacientes submetidos a cirurgia não cardiológica é representada abaixo na figura 1:

Figura 1: Algoritmo de avaliação pré-operatória de pacientes submetidos a cirurgia não cardiológica. Adaptado de AHA/ACC 2014 (1).
DAC: Doença arterial coronariana; MACE: do inglês, major adverse cardiac event
Guidelines de risco cardíaco perioperatório recomendam iniciar a avaliação de risco com história e exame físico direcionados para identificação de condições cardiológicas instáveis ou não diagnosticadas previamente e determinação de risco, para identificar aqueles pacientes que se beneficiariam de testes adicionais ou até mesmo revascularização do miocárdio antes da cirurgia (1).
Calculadoras de risco, como o Revised Cardiac Risk Index – RCRI (2) e o American College of Surgeons National Surgical Quality Improvement Program (1), podem ser usadas para determinação de efeitos adversos cardiovasculares maiores (MACE), que incluem morte por todas as causas, infarto do miocárdio, acidente vascular cerebral, hospitalização devido a insuficiência cardíaca e revascularização do miocárdio.
Medidas de equivalentes metabólicos são utilizadas para representar a capacidade funcional do paciente em intensidade de atividade realizada. Se a capacidade funcional supera 4 METs, o paciente pode proceder a cirurgia sem testes adicionais. Exemplos de atividades que requerem 4 METs incluem caminhar em superfície plana, subir escadas sem necessidade de pausa ou aspirar a casa (3). Pacientes com risco cardíaco elevado e que tenham capacidade funcional baixa ou desconhecida (menos que 4 METs) podem ser estratificados posteriormente quanto ao risco com testes de estresse farmacológico se os resultados mudarem condutas perioperatórias. Pacientes com teste de estresse normal podem prosseguir para cirurgia; já aqueles com teste alterado devem ser manejados de acordo com a alteração específica.
Existem várias similaridades entre as abordagens da avaliação de risco perioperatório entre os principais guidelines. Todos recomendam a avaliação quanto a urgência cirúrgica, risco específico da cirurgia, risco específico do paciente e estratificação adicional em pacientes com risco combinado cirúrgico e específico elevado. O cálculo do RCRI é recomendado por todos os guidelines e nenhum teste pré-operatório adicional é necessário em pacientes de baixo risco submetido a cirurgias também de baixo risco. Entretanto, os guidelines apresentam algumas diferenças (listadas na tabela 2). O principal ponto de diferença é com relação ao teste de estresse e avaliação da capacidade funcional. ACC/AHA1 e ESC/ESA4 recomendam o teste de estresse em pacientes de elevado risco e baixa capacidade funcional. O guideline da Canadian Cardiovascular Society – CCS (5) não faz nenhuma recomendação formal sobre avaliação funcional, propondo apenas a definição de grupos de pacientes nos quais o BNP deve ser testado no pré-operatório. Se apresentar BNP elevado, o paciente deve ser monitorado com troponina no pós-operatório, em vez do teste de estresse no pré-operatório.
Outro ponto de confronto entre os guidelines é a definição de risco cardiovascular. A ESC/ESA (4) usa categorias de baixo (<1%), intermediário (1-5%) e alto (5%) risco cirúrgico, além de calculadoras de risco RCRI e Gupta Myocardial Infarction and Cardiac Arrest – MICA para determinar o risco paciente. A AHA/ACC usa o risco combinado paciente e cirurgia específicos, com duas categorias de risco: baixo (<1%) e elevado (≥1%).
A comparação entre os guidelines é feita na figura 2 a seguir:

Figura 2: Adaptado de Mayo Clinic Proceedings 2020 (6).
O exame de eletrocardiografia (ECG) pode ser solicitado em pacientes com doença coronariana, arritmias, doença arterial periférica, doença cerebrovascular ou doença estrutural cardíaca que serão submetidos a cirurgias de moderado e alto risco. O ECG pré-operatório também pode ser considerado em pacientes assintomáticos, exceto naqueles que serão submetidos a cirurgias de baixo risco. Eletrocardiogramas podem não modificar condutas pré-operatórias, mas são úteis para estabelecimento do ritmo basal do paciente, caso haja algum tipo de complicação posterior.
Ecocardiograma para a avaliação de função ventricular não deve ser solicitado de
rotina no pré-operatório. Esse exame é recomendado em certos contextos clínicos,
como, por exemplo, dispneia a esclarecer, insuficiência cardíaca descompensada,
insuficiência cardíaca com fração de ejeção reduzida sem exames de imagem
recentes, ou até mesmo estenose ou insuficiência valvular nesse mesmo contexto.
Para pacientes com síndrome coronariana aguda, cirurgias eletivas não cardiológicas são geralmente postergadas objetivando redução de risco perioperatório de mortalidade e infarto agudo do miocárdio (IAM), cujo risco é mais alto logo após um infarto.
Para pacientes com IAM que não foram submetidos a revascularização, cirurgias não cardíacas eletivas devem ser postergadas por pelo menos 60 dias. Para pacientes que foram submetidos a revascularização cardíaca, o tempo para realização de cirurgias não cardíacas eletivas é estimado levando em consideração os riscos de descontinuar prematuramente a dupla terapia antiplaquetária e os riscos de atraso da cirurgia (por exemplo, cirurgia oncológica).
Cirurgias não cardiológicas de urgência (ocorrer entre 6-24 horas) e emergência (ocorrer em menos de 6h) estão independentemente associadas a um aumento do risco de morbidade cirúrgica (13,8% emergência, 12,3% urgência, 6,7% eletivas) e mortalidade (3,7% emergência, 2,3% urgência, 0,4% eletivas) (6). Nesses casos, deve-se preceder com a cirurgia e o paciente deve ser manejado de acordo com o risco específico.
1.2 Risco pulmonar
Fatores de risco pulmonar podem ser categorizados em relacionados ao paciente (idade, tabagismo, apneia obstrutiva do sono, doença pulmonar obstrutiva crônica, entre outros) e relacionados à cirurgia. Obesidade e asma controlada não se mostraram fatores de risco independentes associados a complicações pulmonares.
Calculadoras de risco, que incluem os principais fatores de risco e preditores, estão disponíveis para auxiliar na determinação de risco pós-operatório para falência respiratória, pneumonia e complicações pulmonares em geral. O Postoperative respiratory failure risk calculator e o Postoperative pneumonia risck calculator estão disponíveis em ww.surgicalriskcalculator.com/prf-risk-calculator e www.surgicalriskcalculator.com/postoperative-pneumonia-risk-calculator, respectivamente. Essas calculadoras não consideram comorbidades pulmonares importantes, como DPOC e apneia obstrutiva no sono, entretanto são ferramentas úteis no planejamento cirúrgico (7).
Raios-X de tórax de rotina não são necessários em pacientes assintomáticos, mas a American College of Physicians recomenda para pacientes com doenças cardiopulmonares e aqueles com mais de 50 anos submetidos a cirurgia abdominal alta, torácica ou correção de aneurismas na transição abdominal torácica (8). A ACC/AHA recomenda raio-X de tórax para paciente com IMC acima de 40kg/m² para avaliar insuficiência cardíaca, aumento de câmaras e anormalidades vasculares sugestivas de hipertensão pulmonar potencialmente não diagnosticadas (9).
A espirometria não é um bom preditor de risco e não deve ser solicitada de rotina para avaliação pré-operatória, inclusive em pacientes com DPOC. Além disso, não há evidência de um limiar abaixo do qual o risco cirúrgico é inaceitável e contraindique a cirurgia. A espirometria é indicada para paciente com programação de ressecção pulmonar, para preditor de função pulmonar pós-operatória.
A Sociedade Americana de Anestesia recomenda que todos os pacientes sejam rastreados para apneia obstrutiva do sono, a qual está associada a desfechos adversos no perioperatório, incluindo eventos cardiovasculares, complicações pulmonares e admissões em unidade de terapia intensiva. Uma ferramenta de auxílio nesse rastreio é o STOP-BANG escore. Em pacientes de alto risco com programação de cirurgia eletiva, a Sociedade Americana de Anestesia também recomenda avaliação adicional com polissonografia (10).
2 Otimização dos pacientes cirúrgicos
2.2 Medicamentos
2.2.1 Antidiabéticos
Inibidores de SGLT-2 devem ser suspensos 3-4 dias antes da cirurgia (11, 12). Tal recomendação se deve ao fato de essas medicações aumentarem o risco de cetoacidose diabética euglicêmica, uma complicação pouco reconhecida no pós-operatório, além de aumento do risco de infecção urinária e hipovolemia.
Inibidores do DPP-4 e agonistas do GLP-1 podem alterar a motilidade gastrointestinal e piorar o estado pós-operatório, entretanto, como essas medicações não aumentam o risco de hipoglicemia, alguns autores sugerem a manutenção da medicação no dia da cirurgia (13, 14).
Os demais antidiabéticos orais ou injetáveis não insulina devem ser descontinuados na manhã da cirurgia, uma vez que estão associados a complicações como hipoglicemia (principalmente sulfoniureias), hipoperfusão, acúmulo de lactato (metformina) e retenção de fluidos e edema periférico (glitazonas).
Paciente com diabetes mellitus tipo 1 e alguns pacientes com tipo 2 são deficientes em insulina e estão expostos a um risco aumentado de cetoacidose diabética. A insulina também ajuda a limitar a perda proteica durante o período de menor ingesta calórica e estresse no perioperatório. Por isso, a insulina basal deve ser mantida nesses pacientes, mesmo durante jejum (15).
A insulina basal em pacientes diabéticos tipo 2, realizada em uma ou duas aplicações ao longo do dia, deve ser mantida como já exposto. Entretanto, em pacientes cujo nível basal tende a um controle mais rigoroso ou em pacientes cuja hipoglicemia é uma preocupação importante no pós-operatório, recomenda-se reduzir as doses de insulina na noite anterior e pela manhã em 10-25% (16). A insulina pré-prandial deve ser suspensa em todos os pacientes que estiverem em jejum.
2.2.2 Betabloqueadores
O uso de betabloqueadores de maneira profilática no pré-operatório foi alvo de muitos estudos, uma vez que parecia haver redução do risco perioperatório de infarto do miocárdio. O estudo POISE foi o maior estudo a avaliar a eficácia e a segurança do uso profilático dessas medicações (17).
O estudo randomizou 8.351 pacientes com e sem risco de doença aterosclerótica para o uso de metoprolol e grupo controle (placebo) no pré-operatório. Os resultados mostraram um aumento da mortalidade total e acidente vascular cerebral no grupo que fez uso do metoprolol. Além do estudo em si, os autores realizaram uma metanálise com seis estudos (incluindo POISE, DIPOM, MaVS) que demostrou um risco aumentado para acidente vascular cerebral em pacientes que fizeram uso de betabloqueador no perioperatório, confirmando os achados do estudo POISE (18).
Portanto, a ACC e a AHA não recomendam o uso profilático de betabloqueadores. Em pacientes que tenham indicação clínica, recomenda-se esperar após a cirurgia para início da medicação, uma vez que o benefício (aumento da sobrevida em paciente com insuficiência cardíaca) é pequeno considerando o curto período, e o risco de AVC e morte é maior. Contudo, a Sociedade Europeia de Anestesia e a Sociedade Canadense ainda consideram razoável iniciar betabloqueadores em pacientes no perioperatório (4, 5).
Em pacientes que já fazem uso dessas medicações recomenda-se a manutenção delas. Embora haja evidência de que o uso da medicação aumente efeitos adversos, não há evidência de que a suspensão seja benéfica. Um estudo retrospectivo demostrou que a suspensão de betabloqueadores no perioperatório levou a um aumento do risco de mortalidade após cirurgias não cardíacas (19).
2.2.3 Anticoagulantes e antiplaquetários
O uso de anticoagulantes aumenta o risco de sangramento perioperatório, por isso deve ser suspenso na maioria dos pacientes. Exceção feita a pequenas cirurgias, como extração dentária e implante de marcapasso, que podem ser realizadas mesmo com o paciente fazendo uso de anticoagulantes (20). Em todos os casos, a decisão de manter o anticoagulante deve ser feita em colaboração com a equipe de cirurgia.
Quando for necessário suspender a anticoagulação, os antagonistas da vitamina K (varfarina) devem ser suspensos cinco dias antes da cirurgia, sendo que é seguro um INR (do inglês, international normalized ratio) menor que do 1,5 para a maioria dos procedimentos. Se o paciente faz uso dos novos anticoagulantes orais (NOAC), o tempo adequado para suspensão depende do risco de sangramento do procedimento, função renal do paciente e meia-vida da medicação. De uma maneira geral, NOACs podem ser suspensos entre 2 e 3 dias antes da cirurgia.
Quando é necessário suspender anticoagulantes orais, pode ser necessário o uso de uma terapia ponte que consiste na administração de anticoagulantes parenterais de ação curta em pacientes com alto risco trombótico. Essa situação geralmente acontece com pacientes que fazem uso de varfarina, mas pode ser necessário em pacientes que fazem uso de DOAC após uma cirurgia gastrointestinal, uma vez que a absorção da medicação estaria comprometida.
É essencial que o manejo de anticoagulação pós-operatória seja estabelecido em conjunto com a equipe cirúrgica. A depender do risco trombótico do paciente e risco cirúrgico do sangramento, a anticoagulação pode ser restabelecida em 24 horas ou postergada para 72 horas após a cirurgia. Deve-se considerar que, com o uso de NOACs, o paciente encontra-se completamente anticoagulado 1-3 horas após a medicação (20).
O manejo perioperatório de dupla antiagregação plaquetária (uso concomitante de ácido acetilsalicílico e inibidor de P2Y12) depende do tipo de stent (metálico ou farmacológico), tempo e contexto da terapia intervencionista.
Em pacientes com stent devido à angina estável crônica, a dupla antiagregação deve permanecer por pelo menos 30 dias se for um stent metálico e por no mínimo 6 meses, initerruptamente, se for um stent farmacológico, devendo postergar cirurgias eletivas nesse período. Entretanto, caso o risco de atraso da cirurgia supere o risco de trombose do stent, pode-se considerar a suspensão dos inibidores de P2Y12 (clopidogrel, prasugrel, tigagrelor) após 3 meses, retornando a dupla antiagregação assim que o risco de sangramento estiver reduzido.
Em pacientes com stent devido a síndrome coronariana aguda, a ACC e a AHA recomendam a manutenção da dupla antiagregação por 1 ano, ou no mínimo 6 meses contínuos, caso seja necessária cirurgia nesse intervalo (1, 2).
Na maioria dos pacientes recebendo aspirina como monoterapia para prevenção secundária de eventos cardiovasculares, esta deve ser suspensa 5 dias antes da cirurgia e restabelecida assim que o risco de sangramento diminua. Essa recomendação é feita com base no estudo POISE-2, que demonstrou que o uso contínuo de aspirina no perioperatório aumentava o risco de sangramento sem reduzir o risco de eventos cardiovasculares no período (21).
3. Comorbidades
3.1 Desnutrição
Desnutrição é um fator de risco para morbidade perioperatória, incluindo infecção e dificuldade de cicatrização. Por esse motivo, o aumento de ingesta calórica é efetivo na redução de complicações pós-operatórias. Existem algumas ferramentas para auxiliar na estratificação desses pacientes para risco perioperatório. O Subjective Global Assessment of Nutritional Status – SGANS incorpora a ingesta de calorias e achados do exame físico, enquanto o Nutritional Risk Screening Tool se baseia em idade, IMC, perda de peso e severidade das comorbidades.
Proteínas séricas, incluindo albumina e pré-albumina, também são preditores de complicações pós-operatórias. A perda de peso de 15% em um período de seis meses e valores de albumina menores que 3 g/dl são os preditores mais importantes para desfechos desfavoráveis associados à desnutrição. Entretanto, é importante considerar que a albumina tem meia-vida de aproximadamente 20 dias e pode não refletir em desnutrição ou recuperação de desnutrição recente. Além disso, outras comorbidades podem afetar níveis de albumina, como doença hepática e renal. A pré-albumina tem uma meia-vida mais curta, de dois dias, porém pode ser de difícil interpretação no contexto de inflamação (22).
3.2 Diabetes mellitus
Evidências científicas apontam que pacientes com diabetes de difícil manejo estão sob risco aumentado de complicações perioperatórias, incluindo infecções e aumento da mortalidade. Não há, até o momento, nenhum estudo que indique que postergar cirurgia para melhor controle glicêmico favorece o desfecho. Entretanto, deve-se buscar o melhor controle possível antes de uma cirurgia eletiva.
O manejo das medicações para pacientes com diabetes mellitus tipo 1 e 2 no pré-operatório foi discutido na seção 1. No pós-operatório, assim que o paciente estiver se alimentando, o esquema de insulina pré-prandial deve ser restabelecido. Além de evitar hiper e hipoglicemias, um alvo glicêmico perioperatório ainda não está bem estabelecido. Apesar de alguns autores sugerirem alvos glicêmicos, existe pouca evidência de que suportem valores específicos. A Associação Americana de Diabetes defende o alvo glicêmico entre 80 e 180 mg/dl. Outros guidelines recomendam valores entre 90 e 180 mg/dl para pacientes não críticos hospitalizados (23, 24).
3.3 Anemia
Todos os pacientes submetidos a cirurgias devem ser questionados quanto ao histórico de sangramentos, inclusive familiar, para que seja possível a avaliação de desordens da hemostasia e anemia. Exames laboratoriais devem ser solicitados em pacientes com história sugestiva.
Em pacientes submetidos a cirurgia ortopédica, cardíaca, ou aqueles com histórico de doença coronariana estável, a Associação Americana de Bancos de Sangue recomenda transfusão sanguínea para valores de hemoglobina abaixo de 8 g/dl. Para pacientes hospitalizados e hemodinamicamente estáveis, sugere-se a transfusão de sangue para valores abaixo de 7 g/dL (25).
O limiar de hemoglobina de 8 g/dl para pacientes com doença coronariana estável é corroborado pela análise de subgrupos em dois grandes estudos: FOCUS (26) e TRICC (27). Em pacientes com infarto agudo do miocárdio ou angina instável, o estudo REALITY também evidenciou menor risco de eventos cardíacos com o limiar de 8 g/dl. Entretanto, quando sintomático ou com sinais de isquemia presente, pode-se utilizar o limiar de transfusão de 10 g/dl (28).
A Associação Americana de Bancos de Sangue recomenda transfusão de plaquetas abaixo de 50.000/microl para pacientes submetidos a cirurgias não neurológicas ou com punção lombar. Pacientes com trombocitopenia leve podem ser submetidos a cirurgia sem necessidade de transfusão. É importante a avaliação de trombocitopenia no pós-operatório, especialmente em pacientes expostos a heparina, visto que estão sob risco de desenvolver trombocitopenia induzida por heparina (25).
3.4 Doença renal crônica
Pacientes com doença renal crônica estão sob maior risco perioperatório de distúrbios hidroeletrolíticos, acidose metabólica, anemia, sangramento e eventos cardíacos (29). Para pacientes com necessidade de hemodiálise, é importante consultar o nefrologista para ajuste da prescrição de diálise, além de ajuste da remoção hídrica e da heparinização do circuito. Em paciente com doença renal menos avançada, os principais ajustes são de eletrólitos e otimização do status volêmico (29).
Além da doença renal crônica, é importante a prevenção de injúria renal aguda, sendo um fator de risco para desenvolvimento de doença renal crônica e um fator de risco independente para mortalidade cardiovascular. Em uma metanálise, a injúria renal aguda teve uma força de associação similar a diabetes, AVC e doença coronariana no desfecho de mortalidade cardiovascular (29).
A injúria renal aguda é uma complicação relativamente comum, com incidência variando entre 18-47% dos casos cirúrgicos (30). A manutenção da perfusão renal e a restrição do uso de nefrotóxicos são dois fatores importantes no perioperatório. A perfusão renal é mantida, evitando episódios de hipoperfusão no ato cirúrgico, e após, promovendo a euvolemia do paciente. Com relação à nefrotoxicidade, é importante revisar a prescrição médica e eliminar ou reduzir medicações que comprometam o funcionamento do órgão e ajustar doses com base no clearance renal (31).
Em 2013, uma revisão sistemática do banco de dados da Cochrane para intervenções na prevenção de injúria renal no perioperatório evidenciou que não houve benefício de várias intervenções farmacológicas, incluindo dopamina, diuréticos, bloqueadores do canal de cálcio, inibidores da ECA, N-acetilcisteína, bicarbonato de sódio, antioxidantes ou eritropoetina (31).
3.5 Profilaxia de trombose venosa profunda
O escore de Caprini, desenvolvido em 2005, é o escore mais amplamente utilizado para avaliação e previsão de risco de trombose venosa profunda. Foi inicialmente desenvolvido em um hospital comunitário com 150 leitos, mas desde então tem sido validado em múltiplas especialidades cirúrgicas, incluindo plástica, geral, ginecológica, vascular e urológica (32).
A American College of Chest Physicians – ACCP elaborou recomendações para profilaxia de trombose venosa profunda em pacientes cirúrgicos. Em pacientes submetidos a cirurgias, a ACCP recomenda o uso do score de Caprini para estimar o risco trombótico no pós-operatório combinando fatores com o tipo de cirurgia, conforme a figura 3 a seguir (33).

Figura 3: Recomendações para profilaxia de trombose venosa profunda em pacientes cirúrgicos. Adaptado de American College of Chest Physicians evidence-based clinical practice guidelines.
Cirurgia de correção de fratura do quadril, artroplastia total de joelho e artroplastia total de quadril são cirurgias de alto risco trombótico e, portanto, profilaxia mecânica (através de compressão pneumática intermitente) e profilaxia farmacológica são recomendadas. Para profilaxia farmacológica, a ACCP recomenda heparina de baixo peso molecular (enoxaparina). A duração mínima para profilaxia farmacológica em pacientes submetidos a cirurgias ortopédicas é de 14 dias, porém, em pacientes sem risco aumentado de sangramento, a duração deve se estender para 35 dias. Em pacientes que não tolerarem o uso de enoxaparina, podem ser utilizados alternativamente apixabana, rivaroxabana, dabigatrana e antagonistas da vitamina K (33).
4 Cuidados pós-cirúrgicos
4.1 Retenção urinária
Retenção urinária pós-operatória é caracterizada por esvaziamento incompleto da bexiga, resultando em aumento do volume residual pós-miccional. Fatores de risco incluem o tipo de cirurgia (anorretal, reparo de hérnias, artroplastias), cirurgias prolongadas, uso de anestesia regional, administração de mais de 750 ml de fluidos intraoperatórios, utilização de opioides ou anticolinérgicos, idade avançada, entre outros. Retenção urinária no pós-operatório é uma emergência urológicas, e causas reversíveis, medicamentosas devem ser prontamente corrigidas. Remoção precoce de sonda vesical, teste de micção e, se necessário, cateterismo intermitentes estão indicados (34).
4.2 Íleo pós-operatório
Íleo pós-operatório – IPO ou hipomotilidade gastrointestinal após cirurgia está associada a aumento do tempo de internação. IPO é uma resposta fisiológica relacionada à ativação do sistema nervoso simpático, embora a ativação também possa ser causada por mediadores inflamatórios ou medicações (anestésicos e opioides). Fatores de risco incluem cirurgia abdominal e pélvica, técnica cirúrgica aberta e complicações pós-operatórias, como pneumonia (35).
Prevenção de IPO pode ser facilitada por anestesia epidural ao invés de geral (quando possível), redução do uso de opioides intra e pós-operatórios e utilização de técnicas cirúrgicas menos invasivas. Muitas dessas abordagens são componentes dos protocolos do Enhanced Recovery after Surgery – ERAS, que auxiliam em medidas multidisciplinares para reduzir a resposta ao estresse cirúrgico do paciente, otimizar sua função fisiológica e facilitar a recuperação (34).
Intervenções para o tratamento têm sido estudadas, com resultados inconclusivos, como, por exemplo, o uso pós-operatório de café, goma de mascar e deambulação precoce (35). Poucos estudos estão disponíveis para guiar o tratamento do íleo prolongado, ou seja, que dura mais de 3-5 dias. Nesses pacientes, é importante diferenciar íleo pós-operatório de obstrução intestinal mecânica.
4.3 Náusea e êmese
A prevenção e o tratamento de náuseas e êmese pós-operatórios, cuja incidência varia de 30-80% e resulta em sofrimento significativo do paciente, requerem uma abordagem que envolve a identificação de pacientes em risco, redução dos fatores de risco, profilaxia e tratamento dos sintomas. Os fatores de risco incluem sexo feminino; idade jovem, não tabagista e uso de anestesia geral, opioides pós-operatórios e anestésicos voláteis. Com base nessas informações, a Sociedade de Anestesia Ambulatorial recomenda uma estratificação de risco, modificada de Apfel et al.: sexo feminino, 1 ponto; história de enjoo, 1 ponto; não tabagista, 1 ponto; uso de opioides no pós-operatório, 1 ponto. O escore de 0-1 ponto é considerado baixo risco e indica que nenhuma profilaxia precisa ser utilizada; um escore de 2-3 pontos é considerado risco intermediário e recomenda o uso de um ou dois agentes profiláticos; um escore de 4 pontos indica alto risco, com 80% de chance de desenvolver náusea e êmese no pós-operatório. A abordagem nesses casos é a utilização de dois ou mais agentes ou intervenções para a profilaxia. As principais medicações estão indicadas na figura 4 a seguir (36):

Figura 4: Opções medicamentosas para prevenção e tratamento de náusea e êmese no pós-operatório. ¹ Não disponível no Brasil.
Conclusão
A avaliação perioperatória é complexa, e muitas vezes não é elaborada de maneira criteriosa, sendo que a solicitação de exames complementares desnecessários ou intervenções não adequadas podem comprometer a saúde do paciente. É necessário envolver diversas especialidades médicas e equipes multidisciplinares essenciais na avaliação de risco, manejo de comorbidades prévias, cuidados intraoperatórios e na identificação e prevenção de complicações no pós-operatório. Uma abordagem estruturada e colaborativa é benéfica tanto para a equipe cirúrgica quanto clínica e sobretudo para o paciente.
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