Grupo terapêutico da dor: uma estratégia para o tratamento da dor crônica
Samantha Martin Negrini
Psicóloga Clínica e de Promoção à Saúde
A dor é uma experiência universal, sendo alvo de vários estudos que buscam por sua compreensão e formas de minimizar os seus os efeitos. Mas, afinal, o que é dor?
O conceito é amplo e discorre por várias áreas do conhecimento. Ainda que tenham ocorrido tantos avanços científicos e tecnológicos da área da saúde com o propósito de alcançar o controle sobre o fenômeno da dor, ainda há muito o que se estudar, tendo em vista as lacunas de conhecimento que impactam as análises que abarcam o processo da dor.
Segundo consenso da Associação Internacional para Estudos da Dor (IASP) em 2020, dor refere-se a uma experiência sensitiva e emocional desagradável, ligada ou semelhante àquela associada a uma lesão tecidual real ou potencial. Esse conceito vem de uma revisão realizada pela instituição que contribuiu para o entendimento da consideração de aspectos multifatoriais atrelados à experiência de dor.
“Cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é”, diz a letra de Caetano Veloso em que tal afirmação possibilita algumas reflexões, trazendo luz para aspectos individuais e multifatoriais que o processo doloroso reflete no ser. Considerar que a dor sentida e percebida está para além de uma lesão ou adoecimento é de grande valia para o processo de possibilidades de tratamento. O entendimento de individualidade do sujeito não exclui a dimensão social que se entrelaça nesse contexto para a compreensão e critérios para regulação da dor, pois somos seres sociais e buscamos integração com nossos pares.
O contexto de grupo terapêutico contribui para a compreensão de pertencimento, além de discussões a respeito de formas de tratamento, busca por recursos e estratégias de enfrentamento, educação em dor e sua configuração biopsicossocial.
Drumond (2011) destacou que toda dor, principalmente a aguda, pode e deve ser tratada de maneira adequada. Avaliou ainda que a inadequação dos tratamentos é ocasionada possivelmente por desinformação sobre a dor e o manejo farmacológico inadequado, sendo que o cuidado deve ser direcionado para além da medicalização: está na escuta empática, no acolhimento, em enxergar a pessoa e não apenas a sua queixa, em um processo terapêutico que resulta em autorresponsabilidade, autocuidado e autonomia. Nesse contexto, fazem-se necessárias ofertas de ações terapêuticas em grupos como os que acontecem no Núcleo de Promoção à Saúde, bem como na mudança de perspectiva em relação a como cuidar da própria dor.
A criação do “Grupo Terapêutico da Dor”, dentro do Núcleo de Promoção à Saúde, ocorreu em 2019 e surgiu, a princípio, pela percepção de uma demanda que se apresentava como alerta em meio à análise de utilização das carteiras de beneficiários das operadoras Sepaco Autogestão e Sepaco Saúde. Iniciou-se então uma busca sobre o tema pela equipe e sobre possíveis serviços em outras operadoras de saúde, em especial, dentro dos de Medicina preventiva e/ou promoção à saúde.

A equipe se debruçou em leituras de artigos científicos e realizou cursos para aprimoramento técnico, visitas em clínica especializada em dor, e muito discutiu sobre seus conhecimentos e saberes, visando contribuições para as possibilidades de desenvolvimento desse trabalho. O conhecimento prévio em Práticas Integrativas Complementares – as chamadas PICs, tais como Auriculoterapia, Toque Terapêutico (imposição de mãos) e Relaxamento Muscular Progressivo –, ponto de convergência de uma equipe com berço na área da saúde e profissionais atuantes em vários setores, contribuiu sobremaneira para a elaboração do projeto.
Em uma pesquisa realizada por Dellarosa et al. (2013), observou-se a prevalência de 29,7% da população idosa de São Paulo com dor crônica e, destes, quase 50% referiram a dores diárias moderadas que mais geravam desconforto. Em um levantamento epidemiológico a partir de revisão bibliográfica realizado em 2018, Vasconcelos e Araújo concluíram que a prevalência de dor crônica apresentada nos artigos variou de 29,3 a 73,3%, tendo afetado mais mulheres que homens e o local mais prevalente foi a região dorsal/lombar.
Esses achados, associados ao que a equipe em seus estudos identificou como possibilidades de intervenção, serviram como norteadores para a formulação de um projeto denominado então “Grupo Terapêutico da Dor”.
O projeto inicial contemplava grupos com encontros presenciais semanais realizados no Auditório do Hospital Sepaco, localizado dentro das dependências da instituição, na Unidade Sede Vila Mariana e nas dependências do Centro Médico Mogi das Cruzes. Posteriormente, em razão da pandemia de COVID-19, os grupos passaram a acontecer por meio de uma plataforma virtual, no formato online.
O que ora se apresenta refere-se a uma pesquisa descritiva, qualitativa, que objetivou validar as estratégias e recursos utilizados na realização das atividades desenvolvidas durante os grupos por meio dos resultados obtidos no período em que ocorreram as atividades presenciais.
Para tanto, avaliaram-se os resultados alcançados a partir da participação de seis beneficiários, dos convênios Sepaco Saúde e Sepaco Autogestão, previamente inscritos em um dos programas do Núcleo de Promoção à Saúde, tendo como critério para escolha a permanência no grupo desde seu início até o fim, além do preenchimento do Termo de Aceite de Participação. As captações foram realizadas pela equipe por meio de indicação e/ou um ou mais sintomas de dor. O grupo teve 12 encontros, um por semana, com duração média de 2h, sempre no período da tarde.
Dentro da proposta para cada encontro, trabalharam-se temas específicos com foco em educação em dor, responsabilidade e autonomia no tratamento. Inicialmente foi realizada a apresentação da equipe, da proposta do grupo, das regras de funcionamento que incluíam assiduidade, sigilo e participação ativa. A cada encontro, com uma abordagem multifatorial, foram discutidos temas como: reflexões acerca da dor; estratégias de enfrentamento nos âmbitos físico, emocional, social; tratamentos e intervenções mais utilizados; percepção física, emocional e social sobre o quanto a dor pode afetar a vida de cada um; e ainda alimentação, sono, rede de apoio, aceitação e planejamento terapêutico.
Para tanto, foram utilizados recursos audiovisuais e espaço físico amplo, possibilitando sobremaneira a interação e a participação dos beneficiários. Com o intuito de avaliar a resposta terapêutica de cada beneficiário ao que se apresentou ao longo dos encontros, usou-se como instrumento o Inventário Breve de Dor.
Esse inventário teve como intuito estimular o raciocínio e a percepção do fenômeno dor em cada participante, bem como a possível alteração dessa percepção ao longo dos encontros, em consonância com o que Gil (1999, p. 128) desvela sobre o instrumento, questionário, definindo-o como
[…] a técnica de investigação composta por um número mais ou menos elevado de questões apresentados por escrito às pessoas, tendo por objetivo o conhecimento de opiniões, crenças, sentimentos, interesses, expectativas, situações vivenciadas etc
Os inventários eram entregues aos beneficiários no final de cada encontro com a orientação para que pensassem sobre a própria dor e, a partir daí, de como a percebia nas últimas 24 horas e o modo como os afetava em suas atividades, quais atitudes tomavam para lidar com o processo doloroso, qual o percentual de melhora e quais as estratégias utilizadas para esse fim, sendo reflexões facilitadoras para que pudessem responder às questões do inventário.
Foram realizadas dinâmicas em que os beneficiários pudessem compartilhar de suas realidades, suas histórias e dificuldades ligadas aos eventos de dor experienciados. Em uma das dinâmicas foi apresentado um boneco, o mesmo representado no Inventário Breve da Dor, com as áreas do corpo para que pudessem identificar o(s) local(is) em que sentiam dor e a intensidade do que se aproximava em sua autopercepção.

Registros dos encontros do Grupo Terapêutico da Dor.
O acompanhamento desses casos demonstra que as estratégias e recursos utilizados para a realização das atividades em um grupo para tratamento da dor são relevantes e válidos. Além disso, alguns relatos contribuem para esse entendimento. Por exemplo, uma beneficiária com diagnóstico de fibromialgia que participou do grupo presencial e posteriormente retornou no online manifestou que “Gostaria de deixar aqui meu depoimento referente ao Grupo Terapêutico da Dor. Tive fibromialgia e recorri a vários médicos e recursos, inclusive alternativos. Em meio a tudo isso fui convidada a participar desse grupo. As orientações de psicóloga, nutricionista, enfermeira, entre outras, me ajudaram muito. Hoje não tomo remédio para dor e estou bem. Agradeço imensamente.”
Essa manifestação proveniente de registro no setor de ouvidoria ocorreu mais de um ano depois de sua primeira participação no grupo, em 23/06/2021.
Na atualidade, o grupo acontece por meio de encontros quinzenais, online e mais bem estruturado no que diz respeito à captação dos beneficiários, sendo realizada busca ativa em sistema exclusivo do setor, encaminhamentos de profissionais da equipe, central de atendimento, relações empresariais, auditoria, censo diário, centros médicos e inscrições através de demanda espontânea.
Conclui-se que o trabalho em um grupo da dor de fato torna-se terapêutico nas trocas dos conhecimentos e saberes, em que equipe e beneficiários constroem juntos caminhos possíveis para lidar com a dor que se apresenta muitas vezes com tanto sofrimento e perdas. Vale ressaltar a importância em dar continuidade aos estudos sobre o tema.
Referências bibliográficas
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