O impacto da pandemia de covid-19 na atividade dos patógenos respiratórios: uma análise dos efeitos imediatos e a curto prazo

Tempo de leitura: 15 minutos

Gabriel Nakagaki Filliettaz
Médico Residente – 3º ano de
Pediatria pelo Hospital e Maternidade Sepaco

Resumo:
A pandemia de COVID-19 necessitou,
no seu início e ao longo do seu curso,
da adoção de diversas medidas de
contenção, de forma a frear a
disseminação do SARS-CoV-2
e evitar o colapso da capacidade
dos sistemas de saúde. Como
resultado das medidas de contenção,
diversos patógenos tiveram sua
epidemiologia e padrão de
sazonalidade alterados, efeito
colateral que persistiu mesmo
após o controle da pandemia
de COVID-19, através da vacinação
em larga escala. Dentre as possíveis
explicações, levanta-se a possibilidade
de uma população pediátrica mais
suscetível, com diversos débitos
imunológicos, interações entre os
diversos vírus e alterações filogenéticas
dentro das próprias cepas. A duração
desta quebra de sazonalidade ainda
é motivo de especulação, mas a
pandemia, acima de tudo, ensina
quanto os patógenos respiratórios
são dinâmicos e sensíveis às diversas
condições.

Palavras-chave: COVID-19; patógenos
respiratórios; medidas de contenção.

Introdução
A pandemia de COVID-19, causada
pelo severe acute respiratory syndrome
coronavirus 2 (SARS-CoV-2), provocou
grandes impactos na vida diária de
indivíduos ao redor do globo,
ocasionando grande número de
infecções, quadros clínicos graves
e óbitos. Como tentativa de resposta
inicial para contenção da pandemia,
evitando que o grande número de
infectados levasse à sobrecarga
da capacidade de atendimento do
sistema de saúde, foram adotadas
diversas intervenções não farmacológicas,
envolvendo medidas de proteção
individual, novas diretrizes de higienização,
fechamento de estabelecimentos e
paralisação de atividades não essenciais,
fechamento de escolas e interrupção
das aulas, e isolamento social.
Desde 2020, a implementação das
medidas não farmacológicas de
contenção resultou em um amplo
espectro de efeitos na esfera
individual e comunitária.
Entretanto, estes não foram
os únicos afetados pelas condutas não
farmacológicas. Considerando
que as medidas tinham como
proposta a contenção da
transmissão de um vírus
respiratório, era esperado
que outras doenças que
tinham como base a transmissão
por gotículas respiratórias
e contato com superfícies
contaminadas também
fossem afetadas. E, ao longo
dos anos iniciais da pandemia
e após o seu controle definitivo
com a vacinação em larga escala,
foi visto que o comportamento
de diversas doenças fugiu dos
padrões estabelecidos pré-pandemia.

A queda e o reaparecimento
dos patógenos não-COVID-19.

Como exemplo, tem-se o Vírus
Sincicial Respiratório (VSR),
causa importante de infecções
de vias aéreas inferiores, com
graus variados de gravidade,
principalmente em crianças
menores de 2 anos. Nos anos
anteriores à pandemia, observou-se
surtos em épocas similares,
geralmente nos meses de outono
e inverno, com certa sazonalidade.
Em 2020, com as medidas de
contenção da COVID-19, surtos
esperados não ocorreram em
diversas regiões. Naquele ano,
em diversos Estados da Austrália,
o pico esperado de diagnósticos
de casos de VSR, bem como de
hospitalizações relacionadas à
infecção não ocorreu nos meses
de outono e inverno, como em
anos anteriores, no Hemisfério
Sul, entre março e agosto.
Observou-se ainda uma
temporada não convencional
ocorrida nos meses de verão,
iniciado em dezembro 1,2.

Achados similares foram apontados
em estudos em outras regiões
do mundo. Ao longo dos anos
de 2018 e 2019, a França
experimentou picos de casos
de infecções pelo VSR, em
períodos similares, nos
meses de outono e inverno.
No ano de 2020, neste período
não ocorreu aumento
considerável dos diagnósticos
de infecção pelo vírus sincicial
respiratório. Em compensação,
um pico de casos no ano de
2021 ocorreu por volta da época
da primavera, completamente
diferente do experimentado em
anos anteriores 3 na cidade de
Tóquio, no Japão, surtos sazonais
de VSR ocorriam costumeiramente
na transição do verão para
o outono. Em 2020, da mesma
forma que nos casos anteriores,
o surto esperado não ocorreu. Em
2021, entretanto, a cidade experienciou
o maior aumento de casos do VSR
desde que a vigilância deste
patógeno foi estabelecida em 2003.

Sendo um dos vírus mais bem
documentados, o vírus Influenza
também foi extremamente afetado
pela pandemia de COVID-19. Desde
1952, a Organização Mundial da
Saúde coordena seu próprio sistema
de vigilância e resposta global
da Influenza, com 124 Estados
membros. Através das mais
diferentes regiões, observou-se
no início da pandemia um
declínio importante da atividade
das cepas deste patógeno. Entre
outubro de 2020 e o início de 2021,
os EUA e o Canadá observaram
níveis historicamente baixos.
Dados similares foram observados
no México e China. Em vários países
do Hemisfério Sul, foram relatadas
atividades diferentes dos anos
anteriores à pandemia. No Brasil,
entre outubro e novembro de 2021,
um surto anormalmente fora de
época de H3N2 ocorreu, e na
Argentina, houve um aumento
importante na atividade do vírus
Influenza em 2022.

Dentre outros exemplos de doenças
importantes que tiveram seu
comportamento afetado durante
a pandemia, tem-se a doença
pneumocócica invasiva.
O Streptococcus pneumonia
e é um patógeno bacteriano
de grande importância clínica,
causa de importante
morbimortalidade.
Transmitido por gotículas
respiratórias, pode ocorrer
colonização do trato respiratório,
levando a maior risco de evolução
para doença invasiva, incluindo
infecções de vias aéreas inferiores,
tais como a pneumonia,
meningites e quadros de
sepse. Em algumas regiões,
com a adoção das medidas de
contenção, a doença pneumocócica
invasiva teve sua incidência reduzida
durante a pandemia, chegando
a níveis 30% menores em relação
aos estabelecidos em anos anteriores
a COVID-19. A partir de julho
de 2021, com a retirada de diversas
medidas de contenção, a Inglaterra
passou a ter um aumento importante
de casos relatados de doença
pneumocócica, em níveis que
excediam os estabelecidos
em anos anteriores 4.

Diversas outras doenças tiveram
seu comportamento alterado
durante a pandemia de COVID-19
e após seu controle definitivo.
Padrões de sazonalidade foram
quebrados com diversos surtos
ocorrendo fora de época. Diversas
hipóteses têm sido levantadas para
explicar as causas desta mudança
de comportamento.

A questão da imunidade
Uma das hipóteses diz respeito
às questões de imunidade. Cohen
et al. (2021) defende que na ausência
de uma vacina específica para o VSR,
a imunidade parcial e transitória nos
primeiros anos de vida é obtida
através de dois mecanismos: a
própria infecção e a transferência
de anticorpos maternos. Sendo
assim, a baixa circulação do VSR
durante os períodos de medidas
mais agressivas de contenção
teria levado a índices mais baixos
de imunidade adquirida, pelas
duas vias possíveis.

Como resultado, após a retirada
de diversas medidas de contenção,
foi vista a ocorrência de surtos
anormais em relação aos anos
anteriores. Ainda com relação
à baixa exposição, argumenta-se
que, no caso de doenças pneumocócicas,
o pouco contato com os diversos
sorotipos leva a maior proporção
de crianças suscetíveis a essas
cepas, além de pouco contato
com cepas protetivas, capazes
de limitar a colonização por
cepas mais virulentas e não
cobertas pelas imunizações.

Discorre-se ainda quanto ao
papel da imunidade inata,
argumentando-se que a
primeira linha de defesa do
organismo é feita através de
uma imunidade inespecífica,
rápida e imediata, porém
com efetividade limitada.
Diversos estudos apontam
que a estimulação promovida
por diversas exposições a vários
patógenos, ocorrida mais
frequentemente durante a infância,
aumentaria a eficácia da imunidade
inata, levando a respostas reforçadas
em exposições subsequentes.
Possivelmente o menor nível de
infecções durante as medidas de
contenção da pandemia poderia
ter levado a menor estimulação
da imunidade inata e maior
suscetibilidade a infecções em crianças 5.

Quanto aos outros efeitos colaterais
da pandemia sobre a imunidade,
diversas coberturas vacinais
sofreram impactos negativos,
com difícil recuperação no
pós-pandemia. De acordo
com dados do Centro de
Controle e Prevenção de
Doenças (CDC), houve uma
queda acentuada nas taxas
de vacinação infantil durante
a pandemia nos Estados Unidos.
Entre março e setembro de 2020,
a cobertura de vacinação infantil
caiu em média 7,7% em comparação
com o mesmo período de 2019.
A cobertura da vacina contra a
gripe também caiu 2,3% em
comparação com o ano anterior 5,6.

Mudanças nas linhagens e interferência viral
Como outra hipótese a ser considerada,
é possível que os períodos de baixa
circulação dos vírus respiratórios
tenham servido de pressão seletiva,
selecionando os genomas dos vírus
em circulação, levando à mudança
das cepas predominantes. Segundo
Eden et al. (2022), historicamente,
na Austrália, tanto os subtipos
VSR-A e VSR-B cocircularam
com prevalência variável de
cada um. Esta tendência
permaneceu em anos pré-pandemia
de COVID-19. Entretanto, no
final de 2020 e início de 2021,
a predominância do subtipo
A subiu a níveis sem precedentes,
com mais de 95% dos casos
nas regiões estudadas.

Mais além, a análise genômica
realizada revelou que mesmo
dentro da variedade VSR-A,
houve uma grande redução
da diversidade. Diversas
linhagens previamente
estabelecidas estavam ausentes,
com uma dominância importante
de uma única linhagem. Esses
dados ilustram um colapso
notável da diversidade do VSR
na Austrália durante a implantação
das medidas de contenção da
pandemia de COVID-19. Este
colapso, coincidindo com o
aparecimento de duas linhagens
distintas, mas filogeneticamente
relacionadas, é associado aos
surtos ocorridos fora das épocas
previstas por anos anteriores.
Dessa forma, discorre-se que a
mudança em vírus respiratórios
pode ser bastante rápida e levar
a ocorrências de surtos fora da
época esperada 8.

Estudos anteriores revelaram que
diferentes vírus respiratórios
também tiveram seu comportamento
alterado durante a pandemia
anterior de Influenza A H1N1 em
2009. Dentre outras diferentes
explicações, coloca-se como
possibilidade também a interferência
Viral 9. Quanto a esta pauta, Chow,
Uyeki e Chu (2022) discorrem que
infecções virais respiratórias podem
envolver complexas interações entre
patógenos quando um hospedeiro
é infectado por mais de um
patógeno, ou infectado em
sequência por vários deles.
Desta forma, interferência
viral seria uma interação
antagônica, direta ou indireta
entre vírus que afeta a habilidade
de um vírus de infectar e causar
a patologia. Evidências quanto
a esta interação apareceram
durante a pandemia de H1N1,
ocorrida em 2009, quando
surtos isolados de rinovírus
eram associados temporariamente
a quedas nos casos de Influenza.
E, da mesma forma, a atividade do
VSR foi afetada com a difusão da
influenza A. Durante a pandemia
de COVID-19, isto foi particularmente
observado no caso da própria
Influenza. Temeu-se que a ocorrência
em paralelo de uma epidemia de
Influenza junto com a pandemia de
COVID-19 agravasse ainda mais
a sobrecarga sobre os sistemas
de saúde. Embora tenham
ocorrido casos de influenza,
e inclusive coinfecção com
COVID-19, a epidemia paralela
não chegou a ocorrer 1.

Conclusão
A pandemia de COVID-19 foi um
evento de grande importância
histórica, cultural e científica, sem
precedentes em diversos parâmetros.
Mudou não apenas as rotinas
e comportamentos de indivíduos,
comunidades e países, mas também
os panoramas de outros patógenos
que disputam um espaço nas
infecções que podem produzir
em humanos. Diante do exposto
no presente artigo, pode-se também
questionar se determinados fatores
realmente influenciam tanto no
aparecimento de surtos ou não.
As mudanças das estações, como
a chegada do outono e do inverno,
parecem ter uma função de
determinação no surgimento
de surtos bem menor do que se
acreditava e podem ser sobrescritos
por outros determinantes como
a suscetibilidade da população,
interferência de outros patógenos. 10

Ainda não é claro se ou quando
os padrões de sazonalidade
estabelecidos na pré-pandemia
retornarão, com estudos posteriores
e observações epidemiológicas
podendo esclarecer tais questões.
11 No entanto, a experiência
da pandemia de COVID-19 mostra
quanto os patógenos respiratórios
são dinâmicos e sensíveis à mudanças
nos padrões estabelecidos. É um
lembrete de quanto ainda é preciso
acompanhar e estudar esses patógenos
para os momentos de futuras pandemias.



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