Reflexão: desenvolvimento de relações parentais em UTI Neonatal
Camila dal Piccolo Pracchia Fonseca
Médica da UTI Neonatal do Hospital Sepaco
Resumo
O desenvolvimento psíquico começa durante a gestação, sendo marcado pela forte presença da relação mãe-bebê. Após o parto, há o fortalecimento desse vínculo, com a figura paterna também determinando importante função para a recriação das funções familiares. O nascimento de um bebê prematuro ou que necessite de internação na UTI Neonatal pode impactar a criação dos vínculos parentais e potencializar o desenvolvimento de distúrbios psíquicos no recém-nascido. Este texto trará reflexões e sugestões de como auxiliar os pais e recém-nascidos no fortalecimento do vínculo durante internação na UTI Neonatal.
O desenvolvimento da vida psíquica
A vida psíquica tem início antes do nascimento – a Psicanálise demonstrou que existe um laço entre o que é vivido na primeira infância, incluindo a vida fetal, e toda a sensibilidade desenvolvida ao longo da vida, tendo participação fundamental na constituição psíquica da criança, do adolescente e do adulto. Alguns estudos desenvolvidos pela pesquisadora em fisiologia fetal e perinatal Marie-Claire Busnel conseguiram demonstrar que, nos últimos três meses de gestação, o feto consegue distinguir dois sons de diferentes frequências: dois locutores, duas frases, duas línguas distintas. Também foi possível demonstrar que o feto é capaz de reconhecer melodias musicais escutadas durante a gravidez e, portanto, memorizar sons mais complexos (1).
A principal relação desenvolvida durante a gestação é entre o feto e sua mãe – ele responde à voz dela e é sensível ao conteúdo do que é transmitido. No entanto, também há uma segunda forma de comunicação, não verbal: o feto é capaz de reagir quando sua mãe conversa com ele em pensamento, sendo sensível às suas intenções. Por fim, é interessante salientar que a comunicação verbal mãe-feto é diferente: a palavra materna é transmitida ao feto através de seus ossos e tecidos, com baixas frequências, da mesma forma com que podemos sentir a vibração de um diapasão (1).
Essa comunicação mãe-feto foi (e ainda é) objeto de diversas linhas de estudo. Colwyn Trevarthen, pesquisador em Psicologia na Universidade de Edimburgo, estudou o fenômeno da protoconversação em lactentes, presente também em recém-nascidos pré-termo extremos. Através desse fenômeno, o bebê responde de forma rítmica e musical à melodia da voz materna. Mesmo não entendendo o sentido das palavras, ele é capaz de sentir as variações da voz adulta, além de reconhecer a assinatura vocal materna nas semanas que antecedem o parto – um mecanismo protetor para a vida pós-natal: após o nascimento, é importante para o bebê reencontrar aquilo que lhe é conhecido e que fez parte da sua vida intrauterina.
Cada recém-nascido é um indivíduo único, percebendo o mundo e reagindo a ele de forma particular. O ambiente impacta nessa percepção, esculpindo o sistema nervoso através das informações transmitidas pela mãe desde a terceira semana de gestação. Partos difíceis e prematuridade, por exemplo, são situações que podem influenciar no desenvolvimento psíquico das crianças, fazendo com que haja o registro de que o mundo externo é hostil e criando mecanismos de defesa para o mundo externo, entre eles, transtornos do espectro autista, que sabemos ter incidência aumentada entre prematuros, por exemplo.
Quando o esperado não ocorre
Nosso modelo atual de sociedade impõe cada vez mais uma “exigência de perfeição”, exacerbada pela exposição das redes sociais. Esse modelo transcende para as relações parentais, com o sentimento de que os pais precisam ser perfeitos. No entanto, pais perfeitos não existem – para se sentirem próximos da perfeição, exigem que os filhos tenham todas as competências e as possibilidades máximas para explorar suas capacidades, devendo já estar dentro da conformidade ao nascer (1). Esse cenário gera uma grande dificuldade de aceitar as “quebras de expectativa”, presentes quando a criança deve ir para a Unidade de Terapia Intensiva Neonatal (UTIN), por exemplo.
Durante a gestação há uma intensa idealização dos pais, criando o chamado “filho ideal”, imaginário, correspondendo a tudo aquilo que eles sonharam – essa figura de filho ideal cresce no corpo e no psiquismo materno, sendo importante para a criação de vínculo posterior. Os filhos, no psiquismo, são uma extensão dos pais, quase um “projeto narcísico”, sendo criados para fazer tudo aquilo que sonharam. De certa forma, os filhos são a forma de os pais se tornarem imortais. Ao receber uma criança doente, prematura, diferente do filho ideal criado no imaginário, há uma quebra de expectativas importante, uma ferida narcísica nesses pais, podendo impedir inclusive a criação de vínculo pais-bebê ou, no outro espectro, criar pais superprotetores, com dificuldade em aceitar o “filho real”, aquele que realmente nasce.
O momento do parto e o impacto na vida psíquica do bebê
Antes do nascimento, o feto é capaz de memorizar alguns parâmetros maternos, como calor, odor, língua. Após o nascimento, é a manutenção desses parâmetros que gera sensação de segurança. Dessa forma, a “Golden Hour” – manutenção do contato pele a pele entre mãe e bebê durante a primeira hora de vida, estimulando amamentação e vínculo, é essencial. Ao posicionar a criança no ventre materno, observamos que o choro cessa e o bebê se direciona para o seio materno. Ele sente o cheiro, procura o olhar materno (curiosamente, o campo de visão do bebê ao nascer é de cerca de 30 cm, igual à distância seio-rosto materno) e estuda o rosto da mãe para não se perder. Esse comportamento logo após o nascimento tem padrão semelhante a outros mamíferos (1).
Outro aspecto interessante é a presença da figura paterna após o nascimento – o reconhecimento sensorial após o nascimento também engloba a figura paterna. Se o pai foi presente durante a gestação, ele pode acolher e amparar seu bebê, auxiliando a desfazer o laço intrapsíquico que liga mãe e filho, permitindo a renegociação dos papéis fora do útero e fazendo com que o bebê se reconheça como indivíduo independente de sua mãe (1).
Algumas definições e as diversas constituições familiares
Antes de prosseguirmos, é importante ter em mente o significado de alguns termos que utilizaremos (2):
- Parentalidade: diz respeito à reestruturação psíquica e afetiva que possibilita ao adulto assumir o lugar de pai/mãe, atendendo às necessidades de seu filho de forma corporal, afetiva e psíquica. É um processo maturativo, em que a presença do recém-nascido tem papel fundamental;
- Maternagem: capacidade de desempenhar as funções maternas próprias dos cuidados, da comunicação, da atenção ao recém-nascido e à criança, independente do sexo/gênero. Exige que seja capaz de se identificar com a criança e tenha a sensação de pertencimento – sentindo-se parte de sua família;
- Vínculo: atração que um indivíduo sente por outro, com sentimentos de pertencimento, ligação e interação;
- Apego: tendência evolutiva básica para estabelecer laços afetivos duradouros e específicos.
A invenção da maternidade, através da constituição da família moderna, ocorreu no final do século 18 e no início do século 19, com o declínio do poder patriarcal e maior controle das mulheres sobre a criação e a educação dos filhos, propiciando uma divisão “sexual” do trabalho: homens com provisão financeira e mulheres com cuidados com a casa e a prole, despontando uma valorização intensa do sentimento de amor materno, naturalizado e explicado através de bases biológicas e instintivas. Esse “amor materno” ganha força nos anos subsequentes, com a Psicologia e a Psicanálise no século 19, dando enfoque à importância do vínculo mãe-bebê nos primeiros anos de vida como fundamentais para o desenvolvimento infantil saudável (3).
Na segunda metade do século 20, com a consolidação da sociedade industrial, houve mudanças no conceito da maternidade, passando a ser vista como uma escolha, com proles reduzidas, concomitante ao ingresso da mulher no mercado de trabalho, com maior acesso à educação e profissionalização, aliado aos avanços de métodos contraceptivos (3).
Atualmente, podemos descrever a maternidade como uma “colcha de retalhos”, com possibilidades diversas e a criação de alguns paradoxos que causam conflitos importantes para as mulheres pós-modernas. Nesse contexto pós-moderno, ainda, passamos por reconfigurações familiares frequentes, com múltiplas e variadas formas: famílias recompostas, monoparentais, adotivas, homossexuais e homoparentais, em que o desempenho da função materna/paterna não necessariamente corresponde ao sexo (3).
O mais importante para o desenvolvimento emocional da criança não é a sua estrutura familiar, mas sim a existência de pelo menos um adulto responsável capaz de manter com ela uma relação afetiva sólida e saudável.
A Unidade Neonatal e as dificuldades no vínculo parental
O cuidado na UTIN com os recém-nascidos evoluiu muito nas últimas duas décadas, com tecnologias mais modernas e estratégias para minimizar o impacto do nascimento prematuro e melhorar a sobrevida e a qualidade de vida dessas crianças. No entanto, acabamos não levando em consideração os perigos psíquicos causados por fatores como isolamento, silêncio excessivo e privação sensorial a que os bebês prematuros são submetidos quando colocados na incubadora dentro das Unidades Neonatais. A pediatra e psicanalista francesa Françoise Dolto (1908-1988) já descrevia em seus estudos um “autismo experimental” a que esses recém-nascidos são submetidos: após o nascimento, são levados para o berço aquecido para os cuidados iniciais e suporte, transferidos à UTIN e colocados na incubadora, vivendo sem o contato materno, sem o toque e os carinhos que ensinam o bebê a delimitar seu corpo, com uma transição intra/extrauterina abrupta e sem a possibilidade de se sentirem amparados pelo contato pele a pele imediato após o nascimento (1,2).
Dentro da incubadora, o bebê é privado de qualquer relação com o mundo externo, com dificuldades de sentir os limites de seu corpo, propenso a uma potencialidade psicótica que pode despertar brutalmente com uma história de separação. Para amenizar esse impacto da separação e isolamento, temos algumas estratégias que podem facilitar a criação do vínculo e minimizar o impacto do isolamento gerado na Unidade Neonatal (1,2).
O Método Canguru, parte da Atenção Humanizada ao Recém-Nascido de Baixo Peso, é uma das estratégias descritas para amenizar esse sofrimento e impactar positivamente na redução da morbimortalidade dos recém-nascidos de baixo peso (RNBP) (3). A estratégia surgiu nos anos 1990, com expansão e fortalecimento nos anos 2000, através da portaria GM/MS nº 930, de 10 de maio de 2012, que definiu as diretrizes e os objetivos para a organização da atenção integral e humanizada ao recém-nascido grave ou potencialmente grave e os critérios de classificação e habilitação de leitos de Unidade Neonatal no Sistema Único de Saúde, criando o conceito de “Unidade Neonatal”, com uma linha de cuidados progressivos (2).
Esse método engloba um modelo de atenção perinatal voltado para a atenção qualificada e humanizada que reúne estratégias de intervenção biopsicossocial com uma ambiência que favoreça o cuidado ao recém-nascido e sua família, promovendo a participação dos pais e da família nos cuidados neonatais. O enfoque principal se dá nas interações através do contato pele a pele, que começa de forma precoce e crescente, desde o toque até a posição canguru, que consiste em manter o bebê em contato pele a pele, somente de fraldas, na posição vertical, junto ao peito dos pais, guardando o tempo mínimo necessário para respeitar a estabilização do recém-nascido e pelo tempo máximo que ambos entenderem ser prazeroso o suficiente (2).
O Método Canguru reduz o tempo de separação mãe/pai-filho, facilita o vínculo afetivo, possibilita maior confiança dos pais no cuidado do filho, estimula o aleitamento materno, permitindo maior frequência, precocidade e duração, proporciona adequado controle térmico ao recém-nascido, reduz estresse, dor e risco de infecção hospitalar, propicia melhor relacionamento da família com a equipe de saúde, favorece ao recém-nascido uma estimulação sensorial protetora em relação ao seu desenvolvimento integral e melhora a qualidade do desenvolvimento neuropsicomotor (2).
Sabemos que a internação do recém-nascido na Unidade Neonatal é um momento de crise para os pais, com o surgimento de medos, fantasias e emoções não pensadas e elaboradas durante a gestação. Ela interfere no bem-estar e no conforto das relações familiares, modificando a história desejada pelos pais e repercutindo no processo de interação dos pais com seu filho, trazendo riscos para a formação e o estabelecimento de vínculo afetivo.
Os cuidados com a família na Unidade Neonatal
Quando estamos diante de um nascimento prematuro ou com cuidados especiais (um bebê com malformação, síndrome ou asfixia perinatal), a ansiedade gerada pelos pais é muito grande – é o abandono das últimas expectativas quanto à gestação a termo, com um bebê saudável. Um parto prematuro, além de um bebê prematuro, gera pais “prematuros”, impedindo momentos que aproximariam a dupla e o bebê, fragilizando o vínculo (1,2). Essa situação de antecipação do parto ou de intercorrências periparto, como asfixia perinatal ou a constatação de malformações não diagnosticadas anteriormente, gera um grande sofrimento aos pais, podendo inclusive estar aliado à sensação de culpa.
Para melhorar a construção desse vínculo, nós como profissionais de saúde no atendimento do binômio podemos tomar algumas medidas simples (2):
- Apresentar o bebê aos pais em sala de parto, ainda que de forma rápida, permitindo o toque;
- Convidar o pai ou outra pessoa escolhida pela mãe para acompanhar o transporte do bebê para a Unidade Neonatal;
- Cuidar deste primeiro acompanhante: como é a primeira pessoa a entrar na unidade, deixar que veja seu filho antes de comentar sobre a situação, perguntar sobre dúvidas e responder de forma clara, evitando informações excessivas ou técnicas;
- Se o bebê já estiver em estado crítico na admissão: informar sobre as preocupações da equipe e disponibilizar um profissional da equipe para acompanhá-lo na conversa com a mãe. Sempre que possível, notícias críticas devem ser oferecidas à dupla em conjunto;
- Ter em mente que este primeiro encontro ocorre em ambiente estranho e assustador para os pais, com múltiplos dispositivos invasivos, barulhos e monitores, sendo um momento psíquico de grande vulnerabilidade familiar, com sentimento de culpa.
Para melhorar o vínculo específico entre mãe-bebê, devemos tomar alguns cuidados adicionais, facilitando a aproximação, orientando sobre a possibilidade do toque, da conversa e do canto para seu filho, entendendo que nem todas as mães estarão prontas para a maternagem nos primeiros encontros, devendo o profissional de saúde estar livre de julgamentos, observando a interação, escutando os temores e preocupações, informando sobre aparelhos, cuidados e rotinas posteriores (2).
A comunicação, como podemos perceber, é chave para a criação do vínculo, devendo o profissional de saúde se amparar em quatro pilares (2):
- Ouvir mais do que falar: entender o que a família precisa e informar a partir das necessidades e demandas;
- Ter empatia: colocar-se no lugar do outro e respeitar eventuais diferenças;
- Respeitar o medo da família em receber notícias ruins, não antecipando prognósticos já no primeiro encontro;
- Avaliar sempre o grau de entendimento da família: evitar informações excessivas, técnicas demais ou a ausência de informações.
Algumas outras estratégias para fortalecer os vínculos parentais são o atendimento multidisciplinar dentro da Unidade Neonatal, com um Serviço Social e uma estrutura de Psicologia/Psicanálise que possa realizar a “triagem” desses pais e os acompanharem durante a internação – a internação na UTIN, mesmo que breve, pode causar casos de ansiedade e depressão (4). O contato com outros pais, conhecido como “peer-to-peer support”, diz respeito à rede de apoio criada entre pais que passam por situação semelhante, permitindo o compartilhamento de experiências e o sentimento de “unidade” (4,5). Por fim, a criação de Unidades Neonatais centradas na família, com quartos familiares, permitindo uma presença mais intensiva e confortável dos pais na unidade, gera mais conforto e torna o ambiente intensivo menos hostil a essas famílias (4,5).
COVID e relações parentais: como a pandemia afeta o funcionamento das Unidades Neonatais
Desde o início da pandemia de COVID-19 no Brasil, em março/abril de 2020, houve uma intensa desestruturação da rede de apoio das famílias dentro das Unidades Neonatais, sobretudo pela necessidade de restringir a circulação de pessoas, mudando a rotina dessas unidades: limitação da permanência dos pais, restrição de visitas da família ampliada e das visitas dos pais com caso positivo de COVID-19. Essa situação piorou a sensação de distanciamento, culpa e medo, associada a equipes de saúde sobrecarregadas e estressadas pelo contexto mundial.
A solução encontrada para minimizar esse impacto foi criar alternativas para manter o vínculo dos pais, com chamadas de vídeo com familiares, envio de fotos e vídeos do bebê pela equipe de saúde para pais impossibilitados de visitar a Unidade Neonatal, reduzindo a sensação de separação familiar provocada pela separação, sem sobrecarregar as equipes de saúde (6).
Considerações finais
Como tutores e profissionais de saúde envolvidos diretamente na fase de maior suscetibilidade psíquica da criança, devemos repensar sobre nossa atuação na UTI Neonatal, nos esforçando para criar um ambiente propício para seu desenvolvimento e para a criação dos vínculos parentais.
Referências bibliográficas
- Se os bebês falassem. Myrian Szejer, 1ª edição. Instituto Langage, 2016.
- Atenção Humanizada ao recém-nascido: Método Canguru: Manual Técnico. Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção À Saúde, Departamento de Ações Programáticas Estratégicas – 3 edição, Brasília: Ministério da Saúde, 2017.
- Martinez, A L M, Barbieri, V. A experiência da maternidade em uma família homoafetiva feminina. Estudos de Psicologia, Campinas. 28(2), 175-185, abril – junho 2011.
- Best Practice Guidelines. A multilayered approach in the NICU to support parents after the preterm birth of their infant. Early Human Development 139 (2019) 104838.
- Flacking, R. et al – The SCENE group. Closeness and separation in neonatal intensive care. Acta Paediatrica 101 (2012).
- Kirolos, S. et al. Asynchronous vídeo messaging promotes family involvement and mitigates separation in neonatal care. Arch Dis Child Fetal Neonatal Ed 2020; 0; F1-F6.