Relato de Experiência – Cuidados paliativos pediátricos: um campo em expansão

Tempo de leitura: 15 minutos

Carolina Vieira de Campos
Coordenadora da Equipe de Cuidados Paliativos Pediátricos

Carolina Menezes Marson
Psicóloga da Equipe de Cuidados Paliativos Adulto e Pediátrico

Resumo
O conceito de cuidado paliativo pediátrico tem ganhado espaço, especialmente nos últimos anos, diante dessa percepção de cuidado total, estendido à família que também sofre frente ao adoecimento, frente a crianças que também adoecem de forma grave e que seguirão por tratamentos por longos anos de sua vida. Ao pensar no cuidado focado na abordagem paliativa, vemos a exigência de que este se dê em equipe, com médicos, psicólogos, enfermeiros, nutricionistas, etc., pois ao pensar em cuidado paliativo, vemos que a equipe de saúde é o apoio no enfrentamento da doença tanto para a família como ao paciente. Podemos também pensar nas indicações de Cuidados Paliativos Pediátricos em termos dos sofrimentos apresentados pela criança e/ou sua família. Neste sentido, o entendimento das quatro esferas de sofrimento através do diagrama de atendimento multidimensional (DAM) pode ser útil. O objetivo desse artigo é apresentar os resultados obtidos por nossa equipe neste primeiro ano de trabalho no Hospital Sepaco, considerando esse acolhimento e cuidado integral.


Introdução
Quando falamos em Cuidados Paliativos, inicialmente nos vem a ideia de que este está relacionado a pessoas idosas e, na maioria das vezes, em fase final de vida. Porém, segundo a definição da Organização Mundial de Saúde (OMS), os cuidados paliativos consistem na assistência promovida em equipe multidisciplinar, com o objetivo de melhoria da qualidade de vida do paciente e seus familiares, diante de uma doença que ameace a vida, por meio da prevenção e alívio do sofrimento, por meio de identificação precoce, avaliação impecável e tratamento de dor e demais sintomas físicos, sociais, psicológicos e espirituais (1).

Nesta definição não há critério de idade, não se é especificado o cuidado apenas em casos de fase final de vida e se trata do sofrimento de forma total em todas as esferas do cuidado humano. Vale ressaltar que a palavra morte não aparece em sua definição, sugerindo que falamos de cuidados de vida.

Diante disso, vemos que o conceito de cuidado paliativo pediátrico tem ganhado espaço, especialmente nos últimos anos, justamente diante dessa percepção de cuidado total, estendido à família que também sofre frente ao adoecimento, frente a crianças que também adoecem de forma grave e que seguirão por tratamentos por longos anos de sua vida.

Através de definição do Instituto Nacional do Câncer (INCA), o conceito de cuidado paliativo pediátrico, definido em 1998, não difere de forma extrema do definido pela OMS e seria a assistência prestada ao paciente com doença crônica e/ou ameaçadora da vida. Na pediatria, sugere que sejam iniciados no diagnóstico, independentemente do tratamento da doença de base. Aqui também vemos o envolvimento e cuidado em equipe multiprofissional e dando suporte físico (controle de sintomas) emocional, espiritual e social à criança, atendendo também às necessidades da família (2).

Diante do avanço tecnológico ocorrido nas últimas décadas, vimos um desenvolvimento de muitas áreas do cuidado à saúde, o que modificou o perfil dos pacientes e das doenças. Falando em Pediatria, Valadares, Mota e Oliveira, ressaltam o inegável progresso destas em todas as especialidades, contudo, nos lembram que muitas crianças ainda vivenciam doenças que ameaçam a vida, necessitam de cuidados especiais ou que ainda não correspondem aos tratamentos que sua doença necessita. Para os autores, lidar com estes pacientes é pensar em uma abordagem diferente de cuidado, mesmo quando ainda há proposta curativa. Neste sentido, o cuidado paliativo precisa ser implementado com o objetivo de proporcionar melhor controle dos sintomas e qualidade de vida a criança, estendendo-se à família (3).

Considerando ainda estes autores, sua pesquisa evidencia que ao redor do mundo quando se trata de cuidados paliativos pediátricos, muitas crianças morreram em sofrimento, sem um controle de sintomas adequado, com dor, fadiga e dispneia. Ressalta-se que faltam estudos sobre isto na área infantil, sendo por vezes utilizado modelo vivenciado pelos pacientes adultos (3).

A importância da multidisciplinaridade
Claramente, ao pensar no cuidado focado na abordagem paliativa, vemos a exigência de que este se dê em equipe, com médicos, psicólogos, enfermeiros, nutricionistas, etc., pois ao pensar em cuidados paliativos, vemos que a equipe de saúde é o apoio no enfrentamento da doença, tanto para a família como ao paciente.

Para Nascimento et al. (4) a equipe de saúde tem papel fundamental nos cuidados a serem realizados, especialmente quando colabora com a aceitação do diagnóstico, auxiliando no convívio com a enfermidade. Ainda para os autores, estes profissionais devem focar sua assistência de forma integral, oferecendo escuta ativa, uma comunicação efetiva, com o objetivo de diminuir a ansiedade, medo, fantasia e tantos outros afetos da família e da criança, considerando, inclusive, o prognóstico.

Na visão dos autores o cuidar é fundamentado na troca de afetos, de experiências, necessitando de confiança e respeito. Vale ressaltar que tudo isso só se torna possível através de construção de vínculo, que é um processo longo e necessita de cuidados baseados na forma como a assistência se dará (4).

Vale lembrar que, quando falamos desse cuidado, nosso foco não deve ser a doença e sim o sujeito. Para Maciel este deve ser respeitado, informado e estar consciente de todo o processo que ocorre. É um fazer multiprofissional que preconiza individualidade na atenção ao doente e seus familiares, buscando erradicar o sofrimento (5).

Ao falarmos de equipe multidisciplinar, não podemos deixar de pontuar o que Silva et al. (6) afirmam dizendo que esta também sofre com a morte da criança e assim, como a família, busca encontrar mecanismos para enfrentar a perda e elaborar o luto.

Neste sentido, Alves (7) sinaliza que os cuidadores profissionais e não profissionais reconhecem a necessidade do psicólogo na equipe de cuidados paliativos, já que este profissional está apto para disponibilizar aos familiares, paciente e equipe uma escuta especializada, ajudando-os a elaborar os sentimentos decorrentes do agravamento da doença. Ainda para a autora e diante das pesquisas sobre o tema (5,6,7), ficou evidente que a preparação acadêmica é insuficiente para a atuação multidisciplinar nos cuidados paliativos, necessitando de uma qualificação específica diante desse cuidado e das demandas que tal serviço oferece. Ainda se ressalta que a humanização é um fato importante nesta atuação, mas ainda há dificuldade em exercê-la.

Indicações: Quem pode se beneficiar?
Como exposto acima, os Cuidados Paliativos Pediátricos têm como objetivo a melhoria da qualidade de vida, independente do prognóstico da doença. Para se alcançar o objetivo, este deve idealmente ser incorporado no cuidado tradicional de todas as crianças com doenças ameaçadoras da vida, no momento do diagnóstico. Exemplos de pacientes nesta situação estão ilustrados na tabela 1 (8).

Tabela 1: Critérios de indicação de Cuidados Paliativos Pediátricos através do diagnóstico da doença de base

Podemos também pensar nas indicações de Cuidados Paliativos Pediátricos em termos dos sofrimentos apresentados pela criança e/ou sua família. Neste sentido, o entendimento das quatro esferas de sofrimento através do Diagrama de Atendimento Multidimensional (DAM – figura 1) pode ser útil. Trata-se de ferramenta utilizada na avaliação da equipe de cuidados paliativos, na qual o paciente se encontra no centro e os presentes e potenciais sofrimentos dele, da família e da equipe são escritos em cada uma das suas respectivas esferas, de maneira a organizar a ação da equipe e a organização do plano terapêutico. Os principais sofrimentos que podem indicar uma avaliação da equipe de cuidados paliativos estão listados na tabela 2.

Figura 1: Diagrama de abordagem multidimensional (DAM)

Tabela 2: Exemplos de potenciais sofrimentos que podem ser indicação de avaliação pela equipe de Cuidados Paliativos Pediátricos

Cuidados paliativos pediátricos no Hospital Sepaco: retrospectiva de 1 ano
A implementação da equipe de Cuidados Paliativos Pediátricos no Hospital Sepaco iniciou-se em setembro de 2019. Desde então, foram atendidas mais de 80 crianças e suas famílias, sendo aproximadamente metade desta população (48%) constituída de neonatos.

Neste primeiro ano de história, uma em cada três crianças atendidas pela equipe tiveram alta hospitalar (figura 2). Em tais casos, a atuação da equipe envolveu controle de sintomas, acolhimento psicológico e espiritual e elaboração de plano de cuidados para alta hospitalar.

Figura 2: Desfechos das avaliações da equipe de Cuidados Paliativos Pediátricos até Novembro de 2020

Outro exemplo do impacto da atuação dos cuidados paliativos pediátricos pode ser demonstrado através do atendimento das crianças cardiopatas que faleceram após a avaliação pela equipe. Trata-se de uma população de alta complexidade e morbimortalidade, o que justifica o envolvimento de cuidados paliativos a partir do momento do diagnóstico em grande parte das cardiopatias. A análise do fim de vida das crianças cardiopatas atendidas pela equipe desde sua implementação até julho 2020 está demonstrada na figura 3, na qual a população total (14 pacientes) foi dividida em duas metades de acordo com a época de atendimento (Grupo 1: primeiros 7 pacientes. Grupo 2: últimos 7 pacientes). Fica evidente a mudança no perfil de fim de vida, com inserção mais precoce da equipe de cuidados paliativos pediátricos, permitindo maior número de consultas, melhor definição dos valores da família e elaboração de plano de cuidado. Tal inserção mais precoce refletiu no modo de fim de vida destas crianças (figura 4), com menor número de invasões e consequentemente, menor sofrimento.

Figura 3: Dados dos atendimentos das crianças cardiopatas avaliadas pela equipe de Cuidados Paliativos Pediátricos que faleceram na internação

  • ECMO = oxigenação por membrana extracorpórea
  • VM = ventilação mecânica
  • DVA = drogas vasoativas
  • RCP = reanimação cardiopulmonar

Figura 4: Dados dos atendimentos das crianças cardiopatas avaliadas pela equipe de Cuidados Paliativos Pediátricos que faleceram na internação

Considerações finais
Com o avanço do conhecimento na unidade de terapia intensiva pediátrica e neonatal, o número de crianças em condições complexas com as quais é possível conviver, vem crescendo exponencialmente. A integração precoce da equipe de cuidados paliativos pediátricos com o cuidado curativo convencional visa a promoção de uma melhoria da qualidade de vida e alívio dos sofrimentos destes pacientes e seus familiares.


Referências bibliográficas

  1. Global Atlas of Palliative Care at the End of Life. [Internet]. World Health Organization. [citado 6 de novembro de 2020]. Disponível em: https://www.who.int/nmh/Global_Atlas_of_Palliative_Care.pdf
  2. Tratamento do Câncer, 2018 [Internet]. Instituto Nacional de Câncer. [citado 21 de novembro de 2018]. Disponível em: https://www.inca.gov.br/tratamento/cuidados-paliativos-pediatricos.
  3. Valadares MTM, Mota JAC, Oliveira BM. Cuidados paliativos em pediatria: uma revisão. Rev. bioét. (Impr.). 2013; 21 (3): 486-93. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1983-80422013000300013.
  4. Nascimento DM, Rodrigues TG, Soares MR, Rosa MLS, Viegas SMF, Salgado PO. Experiência em cuidados paliativos – à criança portadora de leucemia: a visão dos profissionais. Ciência & Saúde Coletiva. 2013; 18 (9): 2721-2728. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1413-81232013000900027&script=sci_abstract&tlng=pt.
  5. Maciel MGS. Definições e princípios. In: Cuidados Paliativos / Coordenação Institucional de Reinaldo Ayer de Oliveira. São Paulo: Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo, 2008. Disponível em: http://www.cremesp.org.br/library/modulos/publicacoes/pdf/livro_cuidado%20paliativo.pdf
  6. Silva AF et al. Cuidados paliativos em oncologia pediátrica: percepção, saberes e práticas na perspectiva da equipe multiprofissional. Revista Gaúcha de Enfermagem. 2015; 36 (2). Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/rgenf/-v36n2/pt_1983-1447-rgenf-36-02-00056.pdf
  7. Alves RF et al. Cuidados paliativos: desafios para cuidadores e profissionais de saúde. Fractal: Revista de Psicologia. 2015; 27 (2). Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/fractal/v27n2/1984-0292-fractal-27-2-0165.pdf
  8. Himelstein BP, Hilden JM, Boldt AM, Weissman D. Pediatric palliative care. N Engl J Med. 2004; 350 (17): 1752–1762. [PubMed: 15103002]
  9. Saporetti, A et al. Diagnóstico e abordagem do sofrimento humano. In: Carvalho RT, Parsons HA. Manual de cuidados paliativos ANCP. São Paulo: Sulina; 2012.

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