Relato de Experiência – A psicologia no hospital em tempos de pandemia: humanização em foco

Tempo de leitura: 18 minutos

Ana Maia Ramos
Psicóloga Júnior da Pediatria e UTI Pediátrica

Carolina Menezes Marson
Psicóloga Sênior de cuidados paliativos Infantil e Adulto

Melissa Barile
Psicóloga Júnior da Unidade de Internação Adulto

Patrícia Lebensold Mekler
Psicóloga Coordenadora do Serviço de Psicologia Hospital Sepaco

Roberta Moretto
Psicóloga Pleno da UTI Neonatal, UCM e Medicina Fetal

William Vinicius de Sousa
Psicólogo Júnior da UTI Adulto


Resumo
Objetivo: discutir ações referentes à humanização diante do cenário de isolamento social, imposto pela pandemia. Método: Trata-se de um estudo descritivo, tipo relato de experiência, realizado no setor de psicologia do Hospital Sepaco. Resultados: Através do levantamento assistencial, da prática da psicologia hospitalar durante a pandemia de Covid-19, bem como relato de experiência, permitimos exemplificar de maneira clara as possibilidades de atuação e a importância da atuação do psicólogo hospitalar no resgate da humanização. Conclusão: Demonstramos através desse estudo a importância de se reconhecer os aspectos individuais de cada caso para que seja possível a discussão de propostas interdisciplinares que gerem conforto, segurança e acolhimento aos pacientes e familiares. 


Introdução
A pandemia
A Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou, em janeiro de 2020, que o surto da doença causada pela COVID-19 constitui uma emergência de saúde pública de importância internacional e em 11 de março de 2020, foi caracterizada como pandemia podendo ser considerada a maior emergência de saúde pública que enfrentamos nos últimos tempos (1,2).

A saúde física e o combate ao vírus acabam sendo o foco da atenção dos gestores e profissionais de saúde com o objetivo de diminuir os impactos da pandemia. O isolamento social foi adotado, visto que não se conhece ainda um tratamento efetivo para a doença (12).

Estudos demonstram que o medo de ser infectado por um vírus ainda pouco conhecido, com potencial letal e de disseminação rápida, junto com as repercussões emocionais causadas pelo isolamento social, afetam de maneira importante a saúde mental da população. O medo de morrer e de transmitir a doença para entes queridos ficam evidentes nesse período (1,3).

Vivemos muitas urgências durante uma pandemia e precisamos ficar atentos para que nenhuma delas seja subestimada ou negligenciada, como é o caso da saúde mental (1,3).

A psicologia, como guardiã da saúde mental, atua de maneira a minimizar os impactos, auxiliando o indivíduo na adaptação, acolhendo as transformações ocasionadas pela pandemia e o luto pelas diferentes perdas por ela provocada.

A psicologia hospitalar
Sendo a subjetividade o objeto da psicologia hospitalar, a doença é vista como algo real do corpo no qual o homem esbarra. E, quando isso acontece, toda a sua subjetividade é sacudida. A psicologia hospitalar tem como objetivo dar voz à subjetividade do paciente, auxiliando-o no processo de elaboração simbólica do adoecimento (4).
Segundo Angerami-Camon (5), o psicólogo hospitalar tem como objetivo a minimização do sofrimento e possíveis sequelas psíquicas em decorrência da hospitalização. A minimização do sofrimento resultará em um amplo leque de opções de atuação, por esse motivo, os reflexos da internação devem ser entendidos em sua amplitude, bem como as consequências na vida do paciente (5).

Desde a entrada do paciente e da família no hospital, a presença do psicólogo se faz necessária. O psicólogo, durante os atendimentos, estará habilitado a interpretar os significados atribuídos pelo paciente e/ou familiares e, a partir disso, poderá possibilitar ao paciente melhor comprometimento e compreensão da doença. Dessa forma, este profissional poderá atuar na prevenção, diagnóstico, tratamento, alta e nos cuidados paliativos (6).

Em relação à família, o psicólogo oferece suporte emocional para que esta possa enfrentar a situação da melhor maneira possível. A partir da confirmação do diagnóstico, os temores da família se materializam e o núcleo familiar passa a sofrer profundas alterações. Os familiares do paciente passam por um momento de incerteza e angústia diante da possibilidade da morte (6).

Sendo responsável pelo mantimento do tratamento estimado para o paciente, a família é parte fundamental da equipe. A participação da família permite que se encontre o melhor caminho para o paciente, utilizando um planejamento adequado da assistência com uso responsável dos recursos no processo de tomada de decisão para cada cuidado oferecido. É de muita importância conhecer detalhadamente as principais queixas dos pacientes e de seus familiares, considerando as hipóteses identificadas e valorizadas pela equipe, para que o cuidado seja sempre integrado, assegurando um desfecho confortável e digno para a vida daquele paciente, atendendo a todas as necessidades (7).

Humanização
Diante da vivência da pandemia, pensando na atuação do psicólogo hospitalar como o profissional que cuida da subjetividade do indivíduo frente ao adoecimento, entende-se que existem diferentes possibilidades de seguir acolhendo as demandas e sofrimentos, e de certa forma, garantir que todo o trabalho de humanização dessa instituição possa seguir dentro dos limites possíveis das novas formas de contato.

Mas o que entendemos como humanização?
Por humanização entende-se a valorização dos diferentes sujeitos implicados no processo de produção de saúde: usuários, trabalhadores e gestores. Os valores que norteiam essa política são a autonomia, o protagonismo dos sujeitos, a corresponsabilidade entre eles, o estabelecimento de vínculos solidários, a construção de redes de cooperação e a participação coletiva no processo de gestão operando com o princípio da transversalidade (8).

O Ministério da Saúde instituiu, no ano de 2003, a Política Nacional de Humanização (PNH), com o intuito de efetivar os princípios, bases e diretrizes que já são propostas pelo SUS. Buscou ainda possibilitar trocas entre os gestores, colaboradores e usuários diante da produção de saúde e produção de sujeitos (capacidade das pessoas compreenderem a si mesmas e o contexto em que estão inseridas, capacidade de análise e de cogestão das próprias vidas, ou seja, assumindo autonomia e protagonismo) (8-10).

Considerando este novo cenário de pandemia que vivemos em 2020, sem esquecermos que estamos inseridos em uma instituição privada, vimos a necessidade de mudanças em várias frentes.

E como fazer isso considerando que o “estar com” e “perto de” já não seria tão possível neste contexto? Como seguir assumindo um atendimento integral, de escuta ativa, resolutiva, dinâmica, de empatia e de estabelecimento de vínculo? 

A pandemia induziu a psicologia a formular novos questionamentos, tanto no campo de suas práticas como na produção de saberes. Atendimentos presenciais e em grupo, recursos utilizados em nossa prática e constituídos em nossos saberes, precisaram ser revistos. Do mesmo modo, as abordagens aos pacientes e de seus familiares também foram reformuladas.  

Este olhar possibilitou explorar, incluir e reconhecer a alteridade, ou seja, este “outro” (nosso cliente/paciente), sujeito/objeto – campo da saúde – com complexidades e peculiaridades novas.

Método
Com o início da pandemia, no final de março de 2020, o isolamento social adentrou as instituições de saúde. Familiares não poderiam mais estar próximos de seus entes queridos e os acompanharem nos tratamentos propostos ou até mesmo se despedirem se estivessem em fase final de vida.

Para minimizar esse impacto e buscando responder as perguntas acima e resgatar a prática de humanização, no início de abril, a equipe de psicologia do Hospital Sepaco, junto com os gestores de diferentes setores do hospital, elaborou o fluxo de visita remota e boletim médico por meio de videochamada e contato telefônico.

A partir desse fluxo, atendimentos por videochamada tornaram-se habituais, possibilitando aos familiares o contato com os pacientes internados em ambiente de isolamento. Além disso, reuniões familiares por vídeo foram realizadas para que decisões tornassem possível a proximidade da família.

Aparelhos celulares foram disponibilizados, linhas diretas entre a equipe de psicologia e familiares dos pacientes.

Abaixo, apresentamos o relato de experiência onde compartilhamos como mantivemos a humanização mesmo diante do cenário caótico e necessidade de reinvenções repentinas.

Resultado
Através do relato de experiência a partir do atendimento realizado com uma paciente gestante, apresentaremos as ações realizadas, onde foi possível resgatar a subjetividade e manter o cuidado de forma integral, acolhendo a paciente e familiares em suas questões individuais após os abalos que a pandemia provocou.

A maternidade por si só é um período de crise no ciclo vital da mulher e requer novas adaptações. É um momento de fragilidade e requer apoio de toda a família. O nascimento, na maioria das vezes, é envolto por uma grande expectativa diante do novo membro que está chegando. 

Devido à pandemia e às mudanças impostas por esse período, fomos tomados por diversos sentimentos como medo e ansiedade, com a necessidade de criar diferentes formas de nos relacionar e de nos aproximar.

E quando falamos do nascimento de um filho, como se adaptar a uma separação abrupta e inesperada entre a mãe e seu bebê e demais familiares?

Lembrando que o papel do psicólogo hospitalar consiste em minimizar os impactos do adoecimento, a equipe de psicologia do Hospital Sepaco juntamente com a equipe multidisciplinar, com muito cuidado, estudou uma forma humanizada de acolher o momento de um nascimento permeado de dor e ao mesmo tempo de esperança, uma vez que a pandemia intensificou o cenário de separação.

Durante o parto, percebeu-se que o bebê estava em sofrimento e, logo após o nascimento, foi necessário ser levado à UTI Neonatal. As complicações durante o parto foram decorrentes da COVID-19. Mãe e bebê foram separados logo após o nascimento. Nem a mãe, nem o pai conseguiram acompanhar o bebê até a UTI neonatal devido o diagnóstico de COVID-19.

Logo que a paciente se recuperou da anestesia, já em leito de enfermaria, a Psicologia realizou a primeira avaliação do caso para entender quais as necessidades emocionais do casal, recursos internos e forma de organização psíquica diante dos eventos inesperados de separação e isolamento.

A mãe permaneceu internada na maternidade por 3 dias em isolamento, com o acompanhamento do marido, porém sem receber visita dos demais familiares e amigos, além de não poder visitar a filha na UTI neonatal. O sofrimento observado pela psicologia permeava a falta de controle diante da situação inesperada e questões referentes à separação abrupta. Os pais clamavam por contato com seu bebê e com a equipe que estava cuidando dele. De imediato realizamos com os pais uma vídeochamada, onde puderam ver o bebê e receber as primeiras notícias sobre o estado de saúde da criança.

As videochamadas realizadas tinham o objetivo de aproximar e proporcionar aos familiares a participação em todo processo de internação do bebê. Seguimos viabilizando as videochamadas com objetivos diferentes:

• Videochamada para boletim médico: quando o médico informava as condições de saúde da criança, falavam do estado geral, programação de exames, progressão de dietas, prescrição médica, peso e etc;

• Videochamada para acompanhamento da visita multidisplinar: momento em que toda a equipe multidisciplinar se reúne para discutir questões referentes ao caso, com a participação dos pais, que também podem tirar dúvidas e apresentarem seu entendimento sobre a condição clínica da criança;

• Videochamada de interação entre bebê e pais: momento em que os pais podem assistir a criança, conversar com o bebê, observar suas reações e aparelhos/dispositivos utilizados para manter as condições clínicas da criança.

Contudo, foram realizadas 15 videochamadas no decorrer da internação do bebê. Os pais, após alta hospitalar, continuaram em isolamento domiciliar, e o acompanhamento do desenvolvimento continuou sendo realizado remotamente.

Com as videochamadas mencionadas, em diversos contextos e objetivos, fez-se possível proporcionar aos familiares e ao bebê momentos de tranquilidade, aproximação e acalento, garantindo uma assistência humanizada aos pais que, em situação de distanciamento físico, não poderiam deixar de acompanhar as evoluções do recém-nascido.

Nossos objetivos primordiais foram: viabilizar aos pais o estabelecimento de um vínculo de confiança com a equipe, mesmo que distante fisicamente. Assegurar aos pais a comunicação efetiva da evolução de seu bebê e observação do desenvolvimento. Ao bebê, possibilitamos que pudesse ouvir a voz dos pais, reconhecê-los e sentir-se amparado.

Discussão
Pôde-se observar no presente trabalho que a psicologia hospitalar ao interessar-se pela subjetividade daquele que sofre com o adoecimento e hospitalização, foi convocada durante a emergência epidêmica a contribuir com seus saberes acerca da humanização da assistência, em atendimento às demandas integrais dos pacientes e familiares.

Fez-se importante intensificar o reconhecimento dos aspectos individuais de cada caso para que fosse possível a discussão de propostas interdisciplinares que gerassem conforto, segurança e acolhimento aos pacientes e familiares, reduzindo assim o sofrimento e a possibilidade de simbolização traumática por nossos clientes durante o período de hospitalização.

A problemática do COVID-19 intensificou a urgência de abordagens da psicologia hospitalar que lidem com a angústia resultante de uma nova ameaça à existência, uma nova possibilidade de castração, marcada esta pelo real da morte. Assistimos pacientes e familiares imersos em incertezas, medos, marcados por acontecimentos abruptos, repentinos, pela ausência de controle e perspectivas.

A angústia, vista como afeto consequente da ausência de simbolização, mostra-se representada em cada situação de perigo vivenciada pelos pacientes e familiares que enfrentam a luta contra a Covid-19. É esse cenário que tem favorecido a amplificação de angústias durante a hospitalização. Por esse motivo, o emprego das tecnologias de vídeochamada com dispositivos móveis tem auxiliado no processo de reaproximação, elaboração simbólica, manejo da angústia e garantia de assistência humanizada, ao tempo em que protocolos de segurança do paciente são respeitados em sua integralidade.

Conclusão
Neste sentido, vale dizer que o psicólogo e, é claro, a psicologia podem contribuir assumindo um papel de compromisso social legítimo, o que significa agir em saúde de forma humanizada, baseada em uma postura de inclusão.


Referências bibliográficas

  1. Impactos sociais, econômicos, culturais e políticos da pandemia [Internet]. Fiocruz. [citado 7 de outubro de 2020]. Disponível em: https://portal.fiocruz.br/impactos-sociais-economicos-culturais-e-politicos-da-pandemia.
  2. Folha informativa COVID-19 – Escritório da OPAS e da OMS no Brasil – OPAS/OMS | Organização Pan-Americana da Saúde [Internet]. [citado 7 de outubro de 2020]. Disponível em: https://www.paho.org/pt/covid19.
  3. Schmidt B, Crepaldi MA, Bolze SDA, Neiva-Silva L, Demenech LM. Saúde mental e intervenções psicológicas diante da pandemia do novo coronavírus (COVID-19). Estud Psicol Camp. 2020;37:e200063.
  4. Simonetti A. Manual de Psicologia Hospitalar. São Paulo: Casa do Psicólogo; 2004.
  5. Angerami-camon VA. Psicologia Hospitalar – Teoria e Prática. São Paulo: Pioneira; 1995.
  6. Gurgel LA, Lage AMV. Cuidados paliativos em oncologia pediátrica: uma perspectiva de atuação psicológica. 2013;22.
  7. Camargo B, Kurashima AY. Cuidados paliativos em oncologia pediátrica: o cuidar além do curar. São Paulo: Lemar; 2007.
  8. Brazil, organizador. Humaniza SUS: documento base para gestores e trabalhadores do SUS. 4a. ed., 2a. reimpressão. Brasília, DF: Editora MS; 2009. 70 p. (Série B–Textos básicos de saúde).
  9. Campos GW. Saúde pública e saúde coletiva: campo e núcleo de saberes e práticas. 2000;5(Ciência e Saúde Coletiva):219–30.
  10. Política Nacional de Promoção da Saúde: PNPS: Anexo I da Portaria de Consolidação no 2, de 28 de setembro de 2017, que consolida as normas sobre as políticas nacionais de saúde do SUS. :42.

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