Cloro e insuficiência cardíaca

Tempo de leitura: 10 minutos

Otávio Augusto Oliveira De Carvalho
Médico Cardiologista Adulto no Hospital Sepaco.

Resumo
Dentre os íons utilizados no manejo da insuficiência cardíaca, o cloro é pouco aplicado na prática clínica. Este artigo tem por objetivo caracterizar a função da cloremia ao longo da evolução da doença e demonstrar a aplicabilidade do cloro como ferramenta para alcançar melhores resultados clínicos.

Palavra-chave: Insuficiência Cardíaca, Cloro, Diurético, Revisão.


Introdução
A dinâmica de fluidos tem sido descrita com base nas interações entre sódio, potássio e água. Apesar de a fisiopatologia da Insuficiência Cardíaca (IC) descrever o papel do cloro nessas relações, o alvo a ser investigado é proveniente de estudos mais recentes, especialmente com o achado da hipocloremia como marcador prognóstico.
De Bacquer et al. descreveram em 1998 que a hipocloremia (Cl- <100mEq/L) estava associada com aumento de mortalidade por todas as causas em 48%, após ajuste para idade, índice de massa corpórea e natremia (1). Já entre os portadores de IC, Grodin et al. descreveram a cloremia como marcador prognóstico independente na síndrome, mas não a natremia (2).

Fisiologia
Nos seres humanos, a principal fonte dietética de cloro é decorrente da ingestão de cloreto de sódio. Esse íon é reabsorvido ativamente no túbulo contorcido proximal após filtração nos néfrons e passivamente reabsorvido no espaço intercelular pelo gradiente eletroquímico (3).

Entre as funções fisiológicas, destacam-se:
• Principal ânion extracelular;
• Eletroneutralidade sérica;
• Principal íon forte extracelular e eletrólito-chave na regulação do equilíbrio ácido-base;
• Atividade elétrica em geral (miócitos e cardiomiócitos);
• Contribuição na produção de ácido clorídrico, manutenção do gradiente osmótico e secreção de fluidos no trato gastrointestinal;
• Contribuição na manutenção da pressão arterial e da função renal;
• Contribuição na movimentação da água entre os compartimentos corporais.

Papel do cloro na pressão arterial e no feedback tubuloglomerular
O cloreto permite a reabsorção do sódio filtrado nos túbulos para o espaço extracelular e mantém a pressão arterial, independentemente do sódio, além de participar na regulação da liberação de renina no aparato justaglomerular (quanto menores os níveis de cloro, maior a secreção de renina)(4).

Teoria do cloro
A partir da formulação da teoria do cloro, dois modos distintos de descompensação ou progressão da IC são formulados:
• IC com hipercloremia;
• IC com hipocloremia.

Cada modalidade reflete diferenças na ativação e na efetividade do sistema renina-angiotensina-aldosterona (SRAA) e do hormônio antidiurético.

Na IC hiperclorêmica, o acúmulo de cloreto mantém ou aumenta o volume intravascular, que sobrecarrega o coração insuficiente. A manutenção da volemia mantém o fluxo sanguíneo renal e colabora na preservação da função renal.
Em contrapartida, na hipocloremia, há uma distribuição inadequada de cloreto para os túbulos renais, com baixa reabsorção de sódio para os espaços intravascular e intersticial, comprometendo o volume plasmático efetivo. A ativação do hormônio antidiurético e a retenção hídrica ocorrem na tentativa de corrigir a hipovolemia arterial, mas com os níveis persistentemente baixos de cloreto, há ativação excessiva do sistema nervoso simpático sem correção efetiva da hipovolemia, culminando na combinação crítica de hipovolemia, extravasamento de fluidos para o espaço intersticial, aumento da resistência arterial periférica e hipoperfusão orgânica (5,6).

Causas de alterações dos níveis de cloremia
Multifatorial, mas principalmente associado ao uso de diuréticos, hiperativação simpática e do sistema renina-angiotensina-aldosterona (SRAA). Fatores contribuintes incluem: a reabsorção de bicarbonato e a excreção de cloreto nos túbulos proximais sob a ação da adrenalina e da angiotensina-II; a indução de alcalose metabólica pela excreção de íons H+; o ganho de bicarbonato e a excreção de cloreto nos ductos coletores sob estímulo da aldosterona.

Intervenções terapêuticas
A retenção de fluidos na IC origina da falha da bomba cardíaca e as interações cardiorrenais subsequentes com a estimulação neurohumoral reduzindo a excreção renal de sódio e água.
Sendo ponto central na geração de sintomas e desfecho, o manejo da congestão ainda é parte fundamental da terapia, com os diuréticos como principais atores nesse cenário. A cascata de descongestão é um processo contínuo:
1. Drenagem do fluido extravasado para capilares;
2. Redirecionamento da sobrecarga das circulações sistêmica e pulmonar para o ventrículo esquerdo e sistema arterial para os rins;
3. Indução da diurese pelo glomérulo e túbulos renais;
4. Alcançar status euvolêmico.

Estratégias
Como as mudanças no volume plasmático são associadas com alterações de cloremia, o manejo da concentração sérica de cloro pode ser um alvo terapêutico interessante no manejo da IC, conforme figura 1.

Figura 1: Algoritmo de concentração sérica de cloro

O uso de diuréticos de alça em combinação com tiazídicos é capaz de reduzir eficazmente a volemia pela depleção do cloro sérico; uma vez que o cloro alcança níveis mais reduzidos, inicia-se resistência a esses grupos de diuréticos.
A remoção de fluidos extravasados do espaço intersticial também é importante para a redução da lesão orgânica, o que pode ser alcançado elevando-se os níveis de cloro séricos com o uso de diuréticos que aumentam a cloremia, como acetazolamida, os antagonistas do receptor de vasopressina (vaptanos) e os inibidores da SGLT2 (6).
A terapia para IC guiada apenas no cloro pode gerar sobrecarga de volume residual, fortalecendo a abordagem holística dos pacientes com essa síndrome comum e de manejo complexo; para cada momento da descongestão há um manejo terapêutico ideal, individualizado.
É importante ressaltar que nos pacientes com congestão por redistribuição vascular sem ganho de peso efetivo e hipertensos, não há benefício no tratamento com diuréticos, mas sim na vasodilatação. Nessas situações, o bloqueio do SRAA aumenta o fluxo sanguíneo renal e reduz a reabsorção de sódio no túbulo proximal, contribuindo para a manutenção da função renal e a compensação da IC.
Em resumo, a combinação mais eficaz para redução de volume (alça + tiazídico) pode gerar resistência a longo prazo, sendo possível transicionar para um poupador de cloro (acetazolamida, SGLT2 ou vaptano) após uma compensação inicial.
A hipocloremia, mesmo que induzida por diuréticos ou dilucional, relaciona-se com alcalose metabólica, redução da atividade respiratória central e hipercapnia, além de eventos arrítmicos graves, mostrando outros possíveis benefícios da atenção ao manejo da cloremia (7).

Conclusão
Este artigo tem por conclusão iniciar a discussão da abordagem do cloro no manejo da insuficiência cardíaca. Evidências abundantes do valor prognóstico do cloro na IC existem (2,3) e, agora, devem ser valorizadas e reconhecidas como alvo terapêutico a ser monitorado.

Referências bibliográficas

  1. De Bacquer D, De Backer G, De Buyzere M, Kornitzer M. Is low serum chloride level a risk factor for cardiovascular mortality? J Cardiovasc Risk. junho de 1998;5(3):177-84.
  2. Grodin JL, Testani JM, Pandey A, Sambandam K, Drazner MH, Fang JC, et al. Perturbations in serum chloride homeostasis in heart failure with preserved ejection fraction: insights from TOPCAT: Serum chloride in HFpEF. Eur J Heart Fail. outubro de 2018;20(10):1436-43.
  3. Schnermann J. Juxtaglomerular cell complex in the regulation of renal salt excretion. Am J Physiol. fevereiro de 1998;274(2):R263-279.
  4. Kotchen TA, Luke RG, Ott CE, Galla JH, Whitescarver S. Effect of chloride on renin and blood pressure responses to sodium chloride. Ann Intern Med. maio de 1983;98(5 Pt 2):817–22.
  5. Kataoka H. Chloride in Heart Failure Syndrome: Its Pathophysiologic Role and Therapeutic Implication. Cardiol Ther [Internet]. 14 de agosto de 2021 [citado 11 de outubro de 2021]; Disponível em: https://link.springer.com/10.1007/s40119-021-00238-2.
  6. Kataoka H. Proposal for New Classification and Practical Use of Diuretics According to Their Effects on the Serum Chloride Concentration: Rationale Based on the “Chloride Theory”. Cardiol Ther. dezembro de 2020;9(2):227–44.
  7. Cuthbert JJ, Pellicori P, Rigby A, Pan D, Kazmi S, Shah P, et al. Low serum chloride in patients with chronic heart failure: clinical associations and prognostic significance: Chloride in chronic heart failure. Eur J Heart Fail. outubro de 2018;20(10):1426–35.
  8. Grodin JL, Sun J-L, Anstrom KJ, Chen HH, Starling RC, Testani JM, et al. Implications of Serum Chloride Homeostasis in Acute Heart Failure (from ROSE-AHF). The American Journal of Cardiology. janeiro de 2017;119(1):78–83.

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