Relato de experiência: Psicologia e tecnologia — Quando o fim vem acompanhado de um começo
Natalie Candida Oliveira Abreu
Psicóloga no Hospital Sepaco
Roberta Moretto
Psicóloga no Hospital Sepaco
Patricia Lebensold Mekler
Coordenadora do Serviço de Psicologia no Hospital Sepaco
Viviane Rodrigues De Souza
Psicóloga no Hospital Sepaco
Resumo
O presente artigo visou analisar o papel do psicólogo e o uso da tecnologia
no contexto hospitalar diante do cenário de isolamento social, imposto pela
pandemia, obtendo tal conhecimento à luz da teoria psicanalítica. Através de
um relato de experiência, exemplificamos a importância de realizarmos a
intervenção, mesmo que medida por um recurso tecnológico, para que o
cuidado necessário pudesse acontecer. Estudo aprovado pelo Comitê de
Ética em Pesquisa sob o número CAAE 54655521.7.0000.0086.
Palavra-chave: Psicologia Hospitalar, Psicanálise, Tecnologia, Covid-19.
Introdução
Em meados de janeiro de 2020, a Organização Mundial da Saúde anunciou
uma emergência em saúde pública em âmbito internacional, o surto causado
pela doença do Coronavírus, ou Covid-19. Desde então, esse vírus se tornou
uma verdade factual do nosso tempo e tem produzido significativas mudanças
na vida social dos indivíduos(1).
Os sintomas físicos manifestados pela infecção por Covid-19 frequentemente
envolvem tosse, febre, diarreia, dificuldades respiratórias, perda do olfato e do
paladar. E, em casos graves, a doença pode levar o indivíduo à morte, de modo
que um número elevado de pacientes necessita de internações em Unidades
de Terapias Intensivas (UTIs).
Diante disso, estudos apontam que o medo de ser infectado pelo coronavírus
desenvolve nas pessoas sentimentos como: insegurança, ansiedade, angústia
de morte, mal-estar e, entre outros, o medo de transmitir a doença para entes
queridos, levando em consideração que o vírus é pouco conhecido, com potencial
letal e de disseminação rápida.
No ambiente hospitalar, o paciente vivencia um cenário de ameaças tanto
internas como externas: ameaça da sua integridade corporal, separação da
família, ruptura abrupta da sua rotina, a convivência em um local de doença,
dor e morte. Além das manifestações físicas, o indivíduo pode apresentar
sintomas psíquicos, como alta ansiedade, oscilações no humor, fragilidade e
sensação de fraqueza. O sujeito tem toda a sua subjetividade sacudida (2).
Vale ressaltar que os profissionais da saúde se mostram empenhados em combater
o vírus, e, nesse cenário, os de saúde mental desempenham um papel importante,
auxiliando o indivíduo na necessidade de adaptação decorrente da pandemia e na
elaboração do luto pelas diferentes perdas nesse novo contexto.
Tal relação se torna primordial na medida em que o isolamento social imposto
pela pandemia colocou os indivíduos dentro de suas casas e apartamentos,
restringindo as visitas de familiares a seus entes queridos. Dessa forma, os
psicólogos que atuam na área hospitalar precisaram se reinventar, utilizando
os recursos tecnológicos disponíveis para os atendimentos, pois o que suscitava
hesitações e posições controversas passou a ser a única possibilidade segura
para se relacionar com a tríade paciente-família-equipe.
O uso do celular passou a fazer parte dos atendimentos psicológicos como o único
meio possível (diante das restrições de visitas) para favorecer a aproximação paciente,
família e equipe. Através de videochamada, os familiares se conectavam a seus entes hospitalizados, sendo esse contato um alívio para todos. Em outros momentos, antes
da intubação, por solicitação do paciente ou dos familiares, eram realizadas essas
chamadas, muitas vezes vivenciadas como uma forma de despedida. Os familiares
tiveram espaço para fazer orações, os pacientes, a possibilidade de ouvir uma voz
conhecida, música, sons cotidianos, falarem sobre os medos da morte e sobre
algumas pendências também.
Quando o paciente, infelizmente, já estava inconsciente, foi possível intervir com o
uso de áudios enviados pela família. A nossa experiência nos mostrou que, ainda
que não tenhamos a certeza de que o paciente de fato escutou, para os familiares,
o impacto dessa intervenção foi positivo, pois em alguns casos pode-se ofertar
um ritual de despedida.
O contato através das videochamadas aconteceu em todos os setores do hospital, favorecendo a interação de todos os envolvidos no cuidado: paciente, família e equipe.
Objetivo
Discutir o papel do psicólogo e o uso da tecnologia, no contexto hospitalar, diante
do cenário de isolamento social, imposto pela pandemia, obtendo tal conhecimento
à luz da teoria psicanalítica.
Metodologia
Trata-se de um estudo descritivo e exploratório, no modelo de relato de experiência
de natureza qualitativa e desenvolvido com base em material publicado que teve
como critério de inclusão, artigos científicos originais, que abordassem a temática
e que respondessem ao objetivo deste estudo. Como complemento às informações,
foram consultados livros.
O estudo foi realizado no Serviço de Psicologia de uma instituição hospitalar privada, localizada na cidade de São Paulo, no contexto de pandemia do covid-19. O referido
hospital foi inaugurado em 1979 e, atualmente, está na linha de frente no combate
ao coronavírus. A experiência relatada ocorreu no mês de junho de 2021.
Relato de experiência
Diante dos diversos desafios impostos pela pandemia do novo coronavírus na
realidade mundial e na prática do profissional de saúde, o Serviço de Psicologia
do hospital pôde acompanhar a internação de R., processo esse que se mostrou
um tanto quanto singular.
Foi necessária a atuação de duas psicólogas no caso, sendo uma referência da
Unidade de Terapia Intensiva Adulto (UTI Adulto) e a outra da Unidade de Terapia
Intensiva Neonatal (UTI Neonatal). Nós, equipe multiprofissional, seguindo o desejo
dos pais, viabilizamos o “encontro” entre ela e o seu bebê.
A palavra encontro está entre aspas haja vista a tecnologia ter sido a protagonista
dessa história. A videochamada foi a estratégia encontrada para minimizar os
impactos psicológicos e emocionais nesse contexto em que o isolamento de
contato impede que pacientes com covid-19 recebam visitas ou se desloquem
dentro do hospital.
A mãe, R., de 34 anos, gestante de 32 semanas, foi admitida na UTI adulto devido
a complicações do covid-19. Após alguns dias de internação, foi realizado de
emergência o parto cesárea e, pouco depois, mantendo piora clínica, a paciente
precisou ser entubada.
O sofrimento emocional experimentado por ela, pela família e por toda a equipe
assistencial foi intenso. A situação gerou comoção em ambos os setores de internação:
a mãe na UTI adulto com covid-19, o bebê prematuro que precisou ir direto para a
UTI neonatal e o C., esposo e agora pai novamente, que estava sozinho e com uma
rede de apoio pouco efetiva, acompanhando a internação dos dois. Foram pais
novamente, pois o casal já tinha tido o seu primogênito que, infelizmente, devido
à prematuridade, não resistira e faleceu há quatro anos com 2 meses de vida, aproximadamente. O familiar conseguiu ser suporte afetivo e prático para R.,
sempre muito disponível. Ponto de equilíbrio para ela e para a nossa equipe.
Muitas vezes, C. foi exemplo de serenidade e resiliência.
Nesse primeiro momento, foi importante acolher essa equipe (médicos, enfermeiros,
técnicos e auxiliares de enfermagem, fisioterapeutas etc.), oferecendo a eles um
espaço de escuta ativa e acolhedora. Ao saberem da videochamada a ser realizada,
percebia-se o alívio daqueles que torciam e trabalhavam por esse encontro.
Desse modo, entre o período após a cesárea e a necessidade de intubação, realizou-se
por meio do celular corporativo da instituição a videochamada entre R. e o seu lindo
bebê, S, a paciente consentiu esse contato e o desejava. Havia uma psicóloga com a
mãe e a outra com o bebê.
Esse contato, se mostrou único e aconteceu de forma remota, mas cheio de emoção.
Foi possível perceber que o bebê, mesmo dentro da incubadora, respondia aos estímulos
da voz da mãe com algumas reações faciais e corporais. A mãe teve essa percepção e
se emocionou. Foram anos esperando a chegada do pequeno, ela pôde ver o bebê real, apreciar os detalhes, suas bochechas, mãozinhas e pezinhos com a expectativa de estar
com ele em breve.
Em uma tentativa de construção da história do Recém-Nascido (RN), foram
salvos “prints” da tela e enviados aos pais para que pudessem ter essa
recordação. No caso relatado, especificamente, essa imagem será a única
imagem que o RN terá de sua mãe em sua “presença” mesmo que remota,
pois, devido à piora clínica de R., o processo de intubação precisou ser efetivado.
C., diante das vivências hospitalares, pôde experienciar situações ambivalentes
entrando em contato com a melhora de S. e a gravidade do quadro clínico
da R., sendo percebida tal ambivalência em especial no dia do falecimento de R.
Um dia depois, o RN estava evoluindo muito bem e chegou a hora tão esperada
pelos pais: a alta para a enfermaria pediátrica que seria a transição para a alta
definitiva, mas esse contexto foi diferente. Mais uma vez, a equipe se sensibilizou,
pois como poderia o pai ficar com o filho sozinho estando em processo de luto
pela perda da esposa e mãe de S. Mas, em meio a dor e sofrimento, C. assumiu
a responsabilidade e disse que ficaria com o filho em tempo integral, pois ele
sabia que sua esposa ficaria feliz.
Eu, C., agradeço a todas as equipes, médicos e enfermeiros
do hospital Sepaco que cuidaram da minha esposa R.,
que contraiu COVID-19 e estava grávida, do dia
30/05/21 até a data de seu falecimento, dia 18/06/21.
Agradeço também o carinho e a dedicação que tiveram com
nosso filho S., que nasceu dia 04/06/21 e veio para casa
comigo dia 25/06/21. Eu e minha esposa (in memorian),
tínhamos o sonho de ter mais filhos, já havíamos tentado
e perdemos o bebê M., hoje sigo cuidando sozinho,
integralmente do S., contando com a ajuda de doações para
viver. Agradeço a todos pela atenção, C. A.
Conclusão
O ofício do psicólogo na Unidade de Terapia Intensiva, nos faz afirmar a importância
do contato social e afetivo dos pacientes com seus familiares como uma exigência
do nosso psiquismo. Nesse novo cenário, os recursos tecnológicos mostraram-se
como um facilitador para minimizar a angústia dos envolvidos no processo diante
da hospitalização. “Tivemos de aprender, portanto, o que era possível de ser feito,
que era muito melhor do que o ideal perfeito. O feito era melhor que o perfeito.
Esse foi um norteador importante ao longo dos meses de trabalho remoto” (3).
O presente estudo conclui que, diante da angústia vivenciada frente à hospitalização,
o papel do psicólogo se mostra de extrema importância para auxiliar o sujeito na
travessia do adoecimento. Visto que as questões psíquicas e emocionais influenciam
no desencadear e no processo de evolução da doença, a intervenção do analista
se faz necessária e consiste em validar, reconhecer e amenizar o sofrimento
emocional na tríade paciente-família-equipe em tempos de Covid-19.
Referências bibliográficas
- Drouguett J. Leitura flutuante – Revista do Centro de Estudos em Semiótica e Psicanálise São Paulo, 2020;1(2):75. Disponível em: link.
- Botega, N J. (org.). Prática psiquiátrica no hospital geral interconsulta e emergência. Ansiedade e insônia. 3. ed. – Dados eletrônicos. Porto Alegre: Artmed; 2012.
- Franco, M H P.. O luto no século 21: uma compreensão abrangente do fenômeno: Perspectiva histórica – São Paulo: Smmus; 2021 p. 27 – 43.